Archive for 2012

A alma da rotina



Laurette's head with a cup of coffee - Henri Matisse

Acordar para trabalhar – trabalhar para comer – comer para dormir. Dormir para sonhar com aquela infância que viveu tão leve como um pássaro no azul do céu. Acordar para trabalhar – trabalhar para comer – comer para dormir. Dormir para sonhar com aquela criança que queria passar a madrugada acordada para observar as estrelas. Acordar para trabalhar – trabalhar para comer – comer para dormir. Dormir para sonhar com a liberdade das tardes ensolaradas acompanhadas de seus livros de ficção-fantástica. Acordar para trabalhar – trabalhar para comer – comer para dormir. Dormir para esquecer que à medida que envelhecia, seus sonhos diminuíam, seu tempo endurecia, sua liberdade se esvaia, seu viver esmorecia. Acordar para trabalhar – trabalhar para... Morrer, um dia. E por fim àquela rotina.

Fundo do poço


Richard Serra


Os diamantes não tinham valor no fundo daquele poço. No fundo, era tudo escuro. Tudo silenciado pela mesmíssima cor de breu. Cá, na humanidade, aquilo era também verdade. Não importava a superfície dos colos femininos ornamentados por pedrinhas brilhosas... No fundo daqueles peitos, tudo era a mesma cor de breu... Que pulsa, pulsa e pulsa. Sangue escarlate como água que pulsa no fundo dos poços do mundo. Que pinga, pinga e pinga feito diamante que deixava cair naquela beira.

Desenterro



A carta - Eliseu Visconti

Debaixo de sua cama, ela guardava um túmulo. Dormia por cima da angústia daquele enterro, até que resolveu desenterrar aquele segredo. Numa manhã como outra qualquer, tirou debaixo da cama a velha caixa de sapato que servia para guardar as tantas cartas de amor, de amizade, de saudades, de ciúmes, de intrigas, de reconciliações... Todas de um tempo que as cartas significavam sua vida. Tirou e jogou no lixo. Enterrava as lembranças bem longe dali. O vazio que deixou debaixo da cama foi preenchido com o alívio de um passado já passado e a esperança de um futuro por vir.

Formado


Alter ego - Rene Magritte

A festa acabara. Subiu as escadas e foi para seu quarto. Foi parado no meio do corredor pela imagem refletida pelo espelho que havia logo ali, no final. Não era ele. Angustiado, percebera o que se tornara: ele não era o que queria, mas o que outros quiseram. Não era ele. O reflexo era a realização de desejos alheios, de pai, de mãe, da família, da sociedade. Diante dessa realidade, ele sentiu uma lágrima descer pelo rosto. Na imagem do espelho, não viu lágrima alguma. Homem não chorava, afinal... E algumas coisas apenas se sentem. O fato era que a sua festa de formatura acabara. Formou-se – formado naquilo que nunca quis.

Fulminante



Separation - Edvard Munch

Apego é uma coisa que aperta o coração. Amor é uma coisa que o liberta. As sístoles e diástoles do coração daquele homem eram intensas. Ele próprio, consciente do seu problema crônico, receitava sua mente a equilibrar o apego e o amor que sentia por aquela mulher. Porém, um dia fatalmente deixou-se aplacar pela desconfiança e pelo ciúme... O coração apertou forte e, como um último suspiro, afrouxou por completo. Foi de ataque fulminante que o homem deixou viúva a mulher adorada.

Feriadão


Mind Changer - Leah Saulnier


Era feriado e lá estava ele, ao vivo, apresentando o principal Jornal da cidade. Indignava-se por estar ali. Não que não gostasse do seu trabalho. Na verdade, sempre sonhara ser jornalista. A indignação era devido às notícias que anunciaria: pessoa morre na fila de hospital público, porque o médico plantonista aderiu ao feriado nacional; governador é fotografado em praia paradisíaca, descansando no "feriadão"; escolas "enforcam" a semana inteira para aproveitar o feriado; comércio paralisa o dia inteiro; indústria diminui a carga horária de trabalho em decorrência da data especial... Já o jornalista não podia tirar folga, porque a televisão (essa sim!) era levada a sério e sem TV a população não podia ficar no feriadão.

Meu lusíada



Kiss - Henri De Toulouse-Lautrec

Ainda que meu organismo esteja, nesse instante, em plena batalha contra uma gripe, eu não me importaria de morrer sufocada com um beijo teu, tanto é esse o meu desejo. Tu és mais forte que esse vírus bárbaro. Não me importo se não possuo poder bélico – e imunológico – para te extirpar do cárcere voluntário em que te encontras cá dentro em Minh ‘alma.  Eu gosto desse teu espírito de invasor, como um genuíno líder do MST que desterra meu coração como se fosses tua propriedade por direito. Isso! Podes fincar tuas bandeiras revolucionárias nesse meu corpo e partir para a exploração. É desse meu desejo incongruente que quero ser explorada. Serei indígena, africana ou italiana... Tu escolhes e tu tomas conta. Apenas seja um bom explorador, um português daqueles de Camões, um herói. O meu herói!


para Cândido Sales Gomes.

Violenta obra-prima


Painting Woman 2 - Robert James Henry

Batia, sim. Mas com justificativa. Para o marido, a maior das belezas era os olhos assustados de sua esposa a chorar. O desespero preso dentro da íris daquela mulher o encantava. Por isso, as violências diárias – por amor à arte. Mas, por amor a si mesma, a esposa lutou contra o choro. Petrificou seu olhar, impedindo o mínimo brilho de lágrima de aparecer. O marido, desesperado, sem sua dose diária de fascinação, aumentou as pancadas. Mas em nada surtia efeito. Amargurado, parou de bater. Usando todo seu vandalismo, ela destruía os encantos do marido e permanecia marmórea. À medida que a bela arte plástica do homem falecia dentro da alma da mulher, esta ressuscitava.

Donzelas sozinhas



Friends - Henri De Toulouse-Lautrec

Um calor tomou conta de todo o seu organismo. Corou as bochechas. Sentiu o corpo agitar-se. No entanto, permaneceu imóvel para que ninguém percebesse sua exaltação. Em mãos, um bilhete rápido e penetrante – como uma bala, não sabia de onde vinha e como chegara ali, mas lhe partia o peito de forma decisiva. Ela sabia bem quem era o atirador. Ou melhor, atiradora. A letra feminina clamava: “Matemos nossas curiosidades. Assim como eu, sei que as tem; ao meio dia, no quarto... Eu e você, donzelas sozinhas. E só”. Em mente, ela repetia – como para ter certeza – o ‘meio dia’ e o ‘sozinhas’. As donzelas se descobririam. Agora, não seriam como uma bala, mas como uma flecha de duas pontas que perfuraria ambas, numa junção só. Sozinhas.

O outro lado do mundo



Sweet Nothings - John William Godward

O bilhete do seu amado mostrava uma despedida chorosa e rápida. O marinheiro iria navegar a trabalho para o outro lado do mundo. A moça apaixonada procurou saber onde era o ‘outro lado do mundo’. Um amigo metido a geógrafo desmentiu a teoria do horizonte, disse que a Terra era redonda e que, portanto, o marinheiro estivesse abaixo deles. Enquanto outras moças aguardavam seus marinheiros olhando o horizonte, ela passou o resto dos seus dias crente que, abraçando seu próprio chão, estaria mais próxima do seu amado viajante. Deitava todas as tardes, agarrada ao mundo, numa espera incessante.
Porém, talvez porque o planeta gostou de se sentir abraçado, o outro lado do mundo não permitiu ao marinheiro retornar aos braços de sua donzela. Nunca mais os amantes se abraçaram e o planeta permaneceu embalado no fiel amor daquela moça.

Cidadãos cegos


The Empire of Light - Rene Magritte

Em uma ocasião – como outra qualquer – os vizinhos sentados na calçada ousaram lançar seus olhares ao horizonte acima dos tetos da vizinhança. A escuridão daquele novo mundo saltou aos olhos. Não que o dinheiro público não tivesse sido usado na distribuição de iluminação. Na verdade, os cidadãos eram ofuscados justamente pelas tantas luminárias. O tanto que se podia enxergar da cidade, com o auxílio das lâmpadas, era o tanto que se tornavam cegos diante da natureza. Estrela alguma parecia importar aos casais românticos; nuvem nenhuma era mais sondada sobre suas formas e desenhos. O novo mundo apagava aos poucos um mundo que não precisava de tanto para ser contemplado – pois este, sem gasto de energia, poderia felicitar quem se dispusesse a ver os simples espetáculos da natureza. Aquele mundo escuro, no entanto, nada felicitava... Somente cegava.

Desconfusão



Leda Atomica - Salvador Dali

Cansada de suas próprias confusões, resolveu confundir-se para sempre. Desconheceu os conhecidos e conheceu os desconhecidos. Aderiu a todos os sotaques. As suas roupas em nada conferiam um estilo único e próprio. Invadiu o mundo das linguagens, como se não tivesse país de origem e língua mater. Esqueceu seu endereço e passou a conviver com as ruas, os quartos, os bares, os campos e mares. Abandonou suas limitações e identidades; tornou-se mundial. Não mais a pergunta “quem sou eu?” veio enlouquecer sua cabeça, pois se reconhecia em tudo e todos. Em consequência não mais discriminava, não mais se regionalizava e muito menos julgava os diferentes. Acabou definitivamente com as confusões dos que se classificam. Confundiu-se com o universo e seguiu feliz.

Ocaso da superioridade



Man's head - Lucian Freud

Um tanto de defeitos e uma pitada de qualidades: fez-se ser humano. Cheio de ossos, carne aqui e ali, pintava no rosto a imagem da superioridade. A Terra não cabia em suas mãos, mas na mente ele a dominava. Isso o consagrava. Era a espécie que subordinava as demais: tinha no código genético a garantia disso.
Até que um dia se viu prostrado em um hospital. Motivo: picada do mosquito Aedis egypt. Tornou-se dengoso. Quase morto. As tecnologias e tratamentos humanos não surtiam cura. Lembrou o grande Darwin: nem o mais forte, nem o mais inteligente, o real superior era quem se adaptava efetivamente às mudanças. E quantas reviravoltas a vida dá, não? O humano teve que se mudar de mundo. Não mais vivia. No atestado de óbito, o mosquito vencera o humano.

Conhaque!


Colors of Cognac - Andy Mathins

Santo conhaque! A mulher já esquecera que não possuía um tostão para pagar o táxi na volta, mas o conhaque na certa a ajudará a dormir em alguma calçada gelada da cidade como se fosse num colchão d'água de algum Hotel Plaza. Ela vai estar entregue a qualquer homem aventureiro (até aos santos também); terá os sonhos mais energéticos da noite citadina;  além de arrancar risos de desconhecidos e gargalhar fartamente como quem ganha na loteria. O álcool é amigo de todos e todas. Manhã, tarde ou noite... Basta escolher o momento em que se afastar do mundo e esquecer da vida é a melhor decisão a ser tomada. E o conhaque? Ah, esquenta a pele como um cobertor divino! Porém, como tudo possui um porém, o santo conhaque irá despertá-la numa manhã aturdida, despedindo-se de mais uma alma problemática e deixando desamparada uma mulher que, apenas depois de gastar com doses e mais doses, perceberá que o álcool não resolve problemas e a vida só é bem vivida por gente sóbria.

Almas gêmeas


La promenade - Marc Chagall


A gente encontra nossas almas gêmeas quando as manias e anseios mais particulares passam a ser partilhados em dupla, em um encaixe transcendental. No caso dela, porém, era diferente, pois ela não possuía grandes desejos, requisitos nem costumes invioláveis que não fossem facilmente adequáveis. Por isso, todos os amores que surgiram na sua vida foram almas gêmeas para si, desde os mais sem personalidade aos mais irremediáveis. Ela ia se encaixando na vida deles e se sentindo completa... Até a ruptura e o sofrimento do fim. Ela era sempre a que sofria mais. Eram almas gêmeas sendo perdidas, afinal. Não encontrou ninguém para ser “para sempre”. Cansada de se decepcionar, recriou para si que 'alma gêmea' nada mais era o estado de relacionamento que, momentaneamente, a deslumbrasse. Com isso, viu-se agradecida, pois, por ser tão modelável, podia ser feliz de muitas formas... Com diversas almas que por acaso a tomasse entre os braços e prometesse mais um falso e limitado “para sempre”.

Relato de uma "inferior"



Edward Hopper

De longe, observava seu passado brilhante refletido num emaranhado de papéis desinteressados. A biblioteca municipal era menos atraente do que antes. Mas lá estavam os "superiores" que tantos admiravam. Quão inferior os superiores permitiram que a nobre biblioteca ficasse... Tratava-se de uma história cronologicamente decadente: um dia, ela fora a diretora daquela biblioteca e, apesar de manter tudo em ordem, foi substituída por um diretor "com ensino superior completo". Logo como simples bibliotecária também foi demitida do cargo, por muitos outros com "ensino superior". O último dos cargos, a de faxineira, ainda permitia a ela a chance de organizar e tornar atraente aquele lugar... Até que foi posta para fora de lá, pois uma mulher com "ensino superior incompleto" estava ali para limpar e espanar.  Saindo de lá, a pobre trabalhadora sem ensino superior algum viu o desinteresse se instalar na biblioteca. Lá, não a deixavam entrar. Nem ao menos muitas pessoas queriam entrar. Os superiores administravam um vazio agora. Os inferiores ficavam de fora, esperando uma chance de serem vistos com mais dignidade e capacidade.

Carta amiga



Beautiful with Withe Neck - Marc Chagall

Veja só, meu amigo, onde paramos. Sua loucura por mim me deixou sem princípios. Éramos eu e você na calçada da escola, até alguns anos atrás, pensando nas peripécias e brincadeiras da nossa pequena vida. O infortúnio se instalou quando você reconheceu em mim uma mulher e eu, em você, um homem. Os opostos se atraem e se destroem. Nada de amigos, não é? Acabamos com a lealdade de outrora e hoje somos mal vistos. Corroemos nossas dúvidas sacanas num voluptuoso fim de nós mesmos. Agora que sabes como funciona uma mulher e eu sei como funciona um homem, desaparece da minha vida e diz que não somos mais amigos deveras... Escrevo essa carta, querido, para lhe alertar que sinto falta das brincadeiras inocentes do nosso passado. Apenas quero que não deixe o nosso futuro adulto empobrecer sem a amizade leal que tivemos, tudo por conta de uns desejos de jovens insanos. O fato é que, atualmente, não se consegue amigos como antes, e devido a isso, mande notícias. Tua amiga, unicamente amiga, te espera.

Hino de um quase cientista



The cage - Berthe Morisot

Sonhou um dia ser cientista. Como sonhador, realizou a sua primeira experiência ainda pequenino: aprisionou um passarinho numa gaiola por meses a fio. Observou e anotou todas as reações do animal. Percebeu que o cantar foi ficando menos melódico. Mais improvisado. Quase gritado. Decorrido o tempo certo, soltou o passarinho. Um cantar ininterrupto soou no ar e, mesmo não tendo o animal à vista, notou que ele estava pelas redondezas, pois nunca tão alto ouviu aquela cantoria. A primeira conclusão científica da sua vida foi intitulada de ‘liberdade’: uma cantiga alta, que soa como um hino à vida, quando se livra das grades impostas pelo mundo. Daquele momento em diante, mesmo não se tornando um cientista de fato, regeu todas as experiências de sua vida com base naquele conceito. Qualquer problema já tinha sua hipótese implícita: “se livre fosse, não existia esse problema”. 
Como passarinhos, deixava os problemas voarem. Livres.

Súplicas em vão


Rosa artificial - Alejandro Boim

Canta baixinho, mãe, aqui perto de mim. Canta aquela canção de ninar, eu queria tanto dormir... Queria desligar os pensamentos por um momento. Oh mãe, eu sei, não fiz todas as minhas tarefas de casa, meus deveres, minhas responsabilidades, minhas dívidas. Está bem, mãe, não sou mais uma criança, mas me perdoa, eu só queria um instante feliz nos seus braços... Mãe? Não some, mãe! Fica comigo... Ou me leva com você. Só com você.
O lamento se ouvia de longe. A moça não aceitava a morte da mãe. Comentavam que ela não gostava da mãe enquanto viva; que tampouco se despediu dela. Arrependida, definhava em cima do túmulo, em posição fetal, conversando as conversas que nunca teve com sua mãe.

Elo harmônico



Piano keys - Todd Horne

Depois que ele morreu, ela encontrou nas notas do piano o refúgio para onde correr e se sentir protegida das saudades que ele deixou. Ele não era músico, nem tampouco a incentivava a ser uma, porém, de alguma forma transcendental, o vibrar das cordas do piano que ele havia deixado como enfeite da sala de estar a fazia voar sobre a vida e ir buscar na morte a presença dele, do abraço dele, da proteção dele. Era um melódico encontrar. Era um harmônico “boa noite, querida, te amo”. Podia ele estar ali ou não, mas aqueles dedilhares no piano levavam a viúva pianista a nunca se afastar do seu amado. Mais do que um instrumento musical, o piano era o elo entre aqueles amantes... Era uma prova de que a música não deixa apagar os grandes e bons sentimentos.

Santa mediunidade



El comienzo (autoretrato) - Ricardo Celma

Ele teve suas obras primas premiadas nos últimos grandes salões de arte contemporânea internacional. Algumas telas foram leiloadas e contribuíram na formação de uma longa fortuna para ele. Como artista, era visto como quase divino pelos traços tão criativos. Contudo, como um humilde homem que era, não podia esquecer e cometer o erro de não agradecer o dom que a ele foi concedido: era médium. Os espíritos que via desde pequeno – antes motivos de tormentos intensos – agora eram a fonte de sua criatividade. Ele pintava céus e infernos – coisas que os outros humanos não sabiam que existiam ali, em terra, ao lado de todos eles.

Descolorida conexão



O Apple dela - David Hettinger

A luz artificial da tela do seu computador descoloria o mundo ao seu redor. Ela não percebia. Fingia que nunca encontrara cores mais vivazes do que as das redes sociais. Entupia horas da sua juventude com os relacionamentos fugazes das suas tantas contas virtuais. Porém era quando a bateria do notebook resolvia apagar as suas conexões que ela observava a vida palpável, os relacionamentos que estavam a sua espera, as cores que somente o dia – sem nenhuma grande tecnologia – conseguia envolve-la. Eis que surge o medo em cometer erros que não podiam ser excluídos, medo em causar aquele sofrimento que de fato faz doer o peito, e a leva a buscar o carregador... Precisava se conectar à superficialidade de uma vida virtual. Não podia correr o risco de viver de verdade.

Copos-de-leite


Portrai of Natasha Zakólkowa Gelman - Diego Rivera

Por ter a tez tão alva, por possuir fios dourados a escorrer pelo seu rosto e por estar esculpida sempre dentro de roupas brancas, aquela mulher era cercada de admiradores que a comparavam com a flor Copo-de-leite. Estes não se cansavam de enviar ramalhetes e mais ramalhetes de copos-de-leite. Alguns até ousavam alguns versos brancos.
No entanto, nenhum deles alcançava a conquista daquela dama. A razão para tanto era que aquela branca mulher não tolerava a falta de ousadia daqueles cavalheiros. A paixão viria quando surgisse diante dela um homem que declamasse longas poesias rítmicas – pobres ou ricas, porém com rimas bem explícitas – além de colorir o branco da sua vida com rosas e flores de cores sortidas. Enquanto não aparecia um homem corajoso e criativo o suficiente, ela se deliciava em ver tantos homens chorando seus ‘copos-de-leite derramados’.

Carta digital



Caixa de entrada - Carlos Ygoa

A gente reserva as declarações mais intrínsecas e especiais para por nas cartas. A magia de escrever no papel talvez desperte uma emoção mais gostosa de sentir. Não ocorre isso com você? Ah, que pena! Para mim, o digitar do mundo contemporâneo é um germe da dessentimentalização dos humanos. É ir contra a preocupação mental em produzir perfeições. Falta mais dedicação do remetente e consideração com o destinatário... Tal como agora, nessa minha divagação digital. Sou mais um poeta assentimental. As folhas brancas jazem abandonadas ao lado do meu computador que toca os versos “estou guardando o que há de bom em mim para lhe dar quando você chegar”. Quiçá, quando você voltar, algumas cartas terei para lhe entregar!

Afagos de agradecimento


Double Portrait - Lucian Freud


Quinze anos de idade. Aos quinze, ganhara aquela criatura pequena – ambos ainda novos. Agora, quinze anos depois, enquanto a velhice no rosto dela apenas mostrava breves rugas entre as sobrancelhas, naquele pequeno ser – que não era mais tão pequeno quanto antes – a velhice o arrastava para o fim. Ciente disso, a mulher concebeu seus dias para proporcionar os melhores últimos momentos para o seu querido cachorro. Como uma filha adulta que cuida da velhice de seu pai, como forma de agradecer por todos os instantes de apoio e carinho que lhe foi dado ao longo da vida – assim ela fazia, pois, melhor do que muitas pessoas, aquele cão esteve do seu lado, fiel, disposto a cuidar dela, dando o máximo de si. Agora o seu fim estava próximo e cada simples afagar da mulher era para deixar claro que nunca o esqueceria e que o amava profundamente. Ela era completamente agradecida por aqueles quinze anos de companhia.

Uma Eva fora do paraíso



Woman with Black Cravat - Amadeo Modigliani

Ela estava “naqueles dias” em que tudo desmorona por entre as pernas e, ainda por cima, põem a culpa na tal da Eva – culpada por ter possuído o dom traiçoeiro da curiosidade. Sentia-se mais uma Eva, contudo fora do paraíso; as maçãs da sua época de fato não são mais tão apetitosas como as de antes. Enquanto a Eva original teve somente seu amado e a natureza ao seu redor para aturar, lá estava ela, sensível, com tantos seres humanos para atender naquela repartição pública na qual era empregada. Ah, bichos carrascos! O pior de tudo aquilo era não ter o direito de pedir compaixão e calma, por ela estar “naqueles dias”. Para os homens – criaturas que ainda nutriam a ilusão de estar no poder – aqueles dias não significavam nada. Por isso, ela sobrevivia à flor da pele no meio daqueles bichos carrascos.

Inspiração impressa


Livros 5 - Norberto Nunes

Não tinha irmãos mais velhos em quem se inspirar. Não conhecia muito bem seus pais para neles se espelhar. À medida que ia crescendo, dentro do peito crescia uma vontade de se desprender dos brinquedos e buscar novos complementos. Descobriu, numa tarde nublada, uma estante cheia de livros. Afastou a poeira do tempo e leu alguns parágrafos. Sem perceber, acumulava em cima do lábio superior uma fina camada de suor – algo que tanto o irritava, mas que dessa vez ele não afastou, notando-se completamente absorto naquela ficção muda e estampada nas folhas daquele livro. Gravitou o dia inteiro ao redor daquelas páginas. Encontrou-se. Aquela estante mudou a vida do garoto. Descobriu nos livros a sua maior inspiração na vida.

O floricultor



El vendedor de flores - Diego Rivera

Era pesado seu trabalho. Confundia-se com um anjo terreno: carregava nas costas, dia após dia, demandas de sonhos, de desejos, de ousadias, de desculpas, de perdões, de pedidos, de convites, de felicitações, de bênçãos e tantas outros anseios.  Apesar de tanto, sentia-se leve como uma abelha que poliniza as flores – ele polinizava os humanos. Cada flor cultivada e carregada era entregue como uma semente de luz para as vidas que se permitiam sentir a maciez das pétalas ou cheirar os simples aromas. Fosse visto ou não como um bom emprego, ele era grato por ser um árduo floricultor de sonhos.

Paternidade velha



Washington prays for America - Rubber Durk

“Papai, minha professora me deu meio ponto por uma resposta bem respondida hoje...”. Sentado na escadaria da praça, ouviu a lembrança de mais um início de conversa morrendo. Recordou o garotinho, com a voz fininha, tentando todos os dias chamar atenção daquele homem majestoso, ocupado com os artigos do jornal. Também ouviu os decretos de pena de morte das conversas dados através de algum “hum” e “aham”.
Aquelas iniciativas do filho diminuíram, enfraqueciam-se diante da frieza paternal. As novidades tornaram-se segredos. A juventude os afastou. O pai, ficando velho, largou os jornais devido à dificuldade na visão para a leitura e, aposentado, passou mais tempo dentro de casa. Percebeu que não havia ninguém para conversar com ele. O tempo fez crescer o garotinho e o arrancou da casa daquele velho. Não mais teria aquela voz fininha e nem teve longos registros da voz grave que o tempo transformou... O pai velho nunca teve o prazer de ser chamado de velho pai.

Natureza desperta

Portrai of a woman - Pablo Picasso


Caem as folhas da sua primavera tardia; levantam voos os pássaros descoloridos com o tempo; acordaram do ninho seus desejos... E a manhã parecia gritar naquele silêncio. Nascia-se velha, tão quieta que era de impressionar quem a conhecesse deveras. Cheia de distrações alheias, nunca havia percebido a inquietude de si. Porém, agora que não tinha ninguém para cuidar – por ser uma psicóloga aposentada e por ser uma mulher sem filhos e sem marido – passava a reconhecer que ali dentro morava um ser único: morava ela mesma. Ela que nunca se entendia, que nunca se fez entender, mas que agora, afagando a relva verde dos pensamentos despertos, entendia que vivia. Passou a olhar para si.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.