Archive for agosto 2011

Família do taxista


Side effects for goers - Christopher St. Leger


Seus dias e suas noites eram fadados à direção do táxi. Ganhava o salário pouco que era totalmente destinado a sua família. O tempo ao lado dos filhos era no domingo de tardezinha. Os prazeres da esposa ele tinha de forma muito rápida, sem inovações. A benção do seu velho pai ele apenas conseguia nos poucos almoços que conseguia fazer na sua casa. E, com toda essa distância e brevidade, acabava por se achar sem família. Ele sabia mais dos passageiros do táxi do que dos seus familiares. E quem disse que isso o angustiava? Gostava do trabalho de condutor, conselheiro, ouvinte e informante do clima e pontos turísticos para os viajantes.
Encontrava nos passageiros o perfil de pessoas que queria na sua família: aquele que não espera seu dinheiro, mas sua palavra; que não pede explicações da sua rotina, mas que conta a própria rotina, sem rodeios. Os passageiros eram a sua família... E imagine que família grande ele tinha! Riu e acelerou para passar no sinal que acabara de ficar verde.

Acordada eternamente


Femme aux Brás Croisés - Pablo Picasso

Durmia muito pouco. A insônia era uma inimiga antiga e companheira insistente. Naquela noite, no entanto, sentiu um absoluto peso nas pálpebras e – não pensou duas vezes – foi se entregar ao prazer do sono voluntário. Mergulhou num intenso torpor, escuridão inundou seus ouvidos e o silêncio preencheu seus olhos. Até que, em um salto, se viu em pé. Leve e sem sono, porém calma e sem a raiva por não poder dormir. Estranhou aquele estado de espírito seu, até que, ao virar-se para a cama, viu seu próprio corpo deitado e sem movimento. Assustada, observou simplesmente o fato de agora não ter mais que se preocupar com o sono: era espírito, deixara seu corpo morto e viveria agora livre dos pesadelos de permanecer acordada naquele mundo material. Aceitou sua morte e continuou, grata, rumo ao acordar eterno.

Dores de parto



First music lesson 1 - Djordje Prudnikov

Foram dez segundos até perceber que seu único filho havia anunciado que iria sair de casa. A dor pareceu mais forte do que imaginava que seria quando pensava e se preparava para esse anúncio. Um dia os filhos saem da casa dos pais, natural – coisa que ela mesma já fez, obviamente. Mas a dor era o medo de pensar que sair de casa pudesse significar sair da vida dela completamente. E notou em um simples lapso de pensamento que a relação com o seu filho sempre fora dolorosa – dores alegres e outras tristes. Desde o nascimento, já gritava e chorava por vê-lo sair dela. Com os primeiros passos dele, ela chorou de alegria, mas sentiu a dor de não o ter que carregar nos braços. E cada vitória do filho era uma perda milimétrica na sua vida. Agora, o sorriso independente dele contrastava com o espírito abandonado de mãe dela. Porém, esta sabia muito bem que, apesar de tantas dores, não deixaria murchar a libertação contínua do seu filho. Viveria por ele, mesmo sem ele.

Desafinada



Touch - Serhiy Reznichenko

O recital iria começar em poucos minutos. Porém ela arrumou um jeitinho de olhar a plateia e, em meio à multidão, não o encontrou. Não deixou de verificar mais vezes, em cada fileira... Nada. Agora se sentia completamente só, não importasse quantas pessoas estivessem lá fora, era ele quem mais importava. Aquilo tudo que ela iria apresentar foi ensaiado com todo o afinco e pensando nele. E, mesmo depois de convidar e implorar por sua presença, ele não estava ali. O homem para quem dedicaria cada nota tocada naquele piano, resolvera não ir.
Sentiu pena da plateia: iriam presenciar um espetáculo pela metade, pois apenas o lado profissional dela iria se apresentar. O outro lado tão essencial quando o primeiro – o emocional – já havia se entregado ao mar das notas musicais abandonadas. E por lá ficaria desafinando seu próprio abandono.

Curiosidade de uma traída


Morning Light - Mary Jane Ansell


Recordou aquele dia...
Depois da discussão feia que teve, ela acalmou-se e refletiu por alguns minutos. Na sua frente, a figura do traidor permanecia imóvel e sem palavras, até mesmo porque era errado falar naquele momento e ele bem sabia disso. A traída, sem hesitar, sentenciou: permaneceria na mesma casa, com a mesma fechadura da porta, andaria nos mesmos lugares e não mudaria a rotina, pois não era ela quem devia fugir da situação. E iria aguardar por uma boa explicação dele durante o percorrer normal do resto da sua vida. Essa espera não seria por amor, piedade ou vontade de ouvir a voz rouca dele; era o desejo de saciar a curiosidade dela própria, do estigma que sua mente agora possuía em querer entender até onde vai a covardia e a falta de caráter de um ser humano.

Idealizada família


Lyst - Serhiy Reznichenko

Sentou-se para jantar, novamente sozinha. O marido ainda não regressara do trabalho. Os filhos inventavam saídas casuais com amigos. E mesmo se ali estivessem provavelmente permaneceriam longe em mente. Isolada, ela deixou-se levar pelo sentimento de solidão e percebeu os olhos embaçados. Era nesses momentos que recordava o sonho que sempre teve: queria viver apaixonada por sua família, queria curtir os carinhos dos filhos e envolver-se com os prazeres do seu marido. Construiu aquela família, mas o sonho ainda era idealizado.
Nenhuma lágrima foi lançada.  Por força, determinação ou simplesmente por não ter o que fazer para mudar aquela situação, pôs-se a degustar o salpicão. Difícil era permanecer apaixonada por algo que não fazia questão de degustar a vida junto dela.  

Noiva


Summerdress II - Willem Haenraets


De frente para o espelho, sorriu emocionada. O tecido branco bordado à mão com algumas pérolas no busto deixou-a radiante. Sentiu-se quase um anjo, de tão bela e feliz que estava. Recebera o pedido de casamento na noite anterior. Iria construir sua vida agora inteiramente do lado do homem que tanto amava. E naquele instante, numa loja de noivas, ousou escolher um modelo e experimentar. Sim, foi um ato de pura ousadia. Infelizmente, não poderia realizar o desejo de se casar daquela forma radiante. O tecido branco e as pérolas ficariam nos sonhos. O produto era caro demais, até mesmo o aluguel, para ela – moça pobre, faxineira do centro da cidade. Porém, naquele momento, imaginou-se daquele modo a entrar na igreja matriz e a dizer ‘sim’ para o seu amado. A sua felicidade era capaz de ignorar suas condições e tornar aquela intensa imaginação em quase realidade.

Explicação


Despair - Mats Eriksson

Ele nunca gostou de dar explicações e também nunca se interessou por elas. Não cobrava e não queria ser cobrado. Por isso, nunca se deu bem com a escola, com todas as disciplinas explicativas. Por isso, não se interessou pelo ensino superior. Por isso, nunca conseguiu um emprego – não necessariamente porque não tinha estudos, mas porque nas entrevistas ele se recusava a dar explicações sobre sua procura. Ainda por isso, nunca teve longas companhias – as conversas pessoais são sempre explicativas. Ah, por tudo isso, ele pouco viveu. Sem explicação nenhuma, um dia matou-se e deixou para trás todas as explicações.

Realizados




Hotties of Boynton Beach - Edith Hunsberger


Chamou o marido para sentar no banco descascado do jardim de inverno da casa. Era o único espaço bonito que havia pensado para a conversa. Já estavam velhos demais para saírem pela cidade, passear pelas praças ou viajar para alguma praia. Com sua voz enferrujada, disse ao marido que já estavam em tempos de terem aquela conversa. Agradeceu pela companhia de anos a fio, pelos prazeres e apoios. Lamentou que não pudessem permanecer jovens. E, por fim, sentenciou: “quero ser enterrada do lado da minha mãe, querido, mas também peço que não fique muito longe de mim...”. O senhor de poucos cabelos, rugas na testa e tremores no braço esquerdo ainda tentou desconversar, mas percebeu que a sentença da sua amada velha já fora dita e, com isso, precisa falar algo. E foi somente após um longo silêncio – daqueles que somente os velhos sentem passar – que afirmou: “com toda certeza, querida, farei o que for preciso para realizá-la até mesmo na morte e não se preocupe, estarei enterrado do seu lado”.
Foram poucas semanas até o falecimento de ambos: primeiro ela e quatro dias depois, ele. Adormeceram na eternidade, um do lado do outro.

Amor vencido


Os amantes - René Magritte



O último beijo foi dado assim com um tanto de sentimento que nem eles acreditavam que ainda seriam capazes desse tanto. Há tempos que o relacionamento vinha se arrastando. Ele já não se importava se ela gostaria do seu perfume e ela pouco se preocupava se o hálito estava fresco. Fizeram-se o favor de, naquele último momento, olharem-se – não no fundo dos olhos, porque isso dava repugnância em ambos – brevemente e concluírem que por ali já estava bom. Bom demais. Fizeram tudo que podiam um com o outro. Ela o usou até pelo avesso; ele a cobriu com todos os doces que tinha em mente. Saciaram-se. E o estômago de ambos já estava cheio.
Ademais, qual relacionamento iria durar tanto daquela forma? Eram apenas mais dois cidadãos do mundo, completamente entregues aos prazeres momentâneos da civilização capitalista e os tais sentimentos não eram realmente sentidos. Única real semelhança íntima entre eles era a crença que amor era um produto de mercado e com data de validade. O amor deles venceu... Então, ou acabavam por ali ou o estômago cheio de ambos colocaria tudo para fora.

Contrato




Day dream - Andrew Wyeth

A noite de núpcias foi fria. Nem o calor do corpo da donzela esquentou-o. Casamento por conveniência já começava assim, passivo e triste. Forçado. Entristecia a cada expiração só em pensar que não era um contrato de tempo determinado, muito pelo contrário, a intenção era para ser por toda a vida. E que vida viveria dali por diante? A vida de um marido frio, com lembranças da amante esquecida, de amores pausados por uma assinatura entre famílias. O seu pai estava com o peito cheio de honra pelo contrato com uma das melhores famílias da província, mas ele, o filho, estava com o peito cheio de angústia por ter que largar a paixão com a cabocla da fazenda para ficar com a loirinha da vila. Pois bem, o que haveria ele de fazer? Permaneceria pelas manhãs a observar o corpo pálido da então sua esposa, adormecido sob o mosquiteiro. Observaria com pesar, uma vez que aquela imagem seria mais bela se o mosqueteiro tentasse, em vão, esconder uma certa pele dourada que ele tanto sentia falta.

Carta de pedido


Suplício por alívio - Edvard Munch


Olá, Desespero. Escrevo na minha mente, porque já não tenho forças nos dedos para escrever em papel. Meus dedos andam fracos do choro lancinante que não para de rasgar minha face. Os pingos de lágrimas já escorrem pelo meu peito e só digo isso para que constates que o meu sofrimento não é um mero abalo. Sim, recorro diretamente a ti, Desespero, para que tenhas pena desse corpo de mulher ferida. Já me bastam os fatos do abandono e ainda queres tu fazer companhia dia e noite a mim? Peço perdão, mas tua presença não me ajuda e penso que ajuda é a tua intenção, pois fosse o contrário, deixar-me-ia completamente na solidão – talvez ainda pior. Ah, querido Desespero, agradeço a preocupação, mas meu peito está machucado, o Amor deixou-me e não vejo melhor remédio do que pedir que vá, deixe-me também. Eu suporto este abalo novamente, as lágrimas equilibrarão o arfar da perda desta vez. Sim, eu cuido de mim mesma, prometo. E tenho mais dois pedidos a fazer-te: se tu vires a Paz por onde andares, Desespero, pede que me venha fazer uma visita e, por último, se vires o Amor, dê esse recado: a última vítima que fizestes, Amor, escolheu morrer em Paz.

Unidos


O abraço - Projeto Miza Pintor


Voltou a por lenha na fogueira. Queria o ambiente quente, só para sentir na pele o suor dela. A testa transpirava quando ela entrou na saleta e suspirou. Não iriam abrir a boca para deixar escapar palavras... São nesses momentos que palavras não se encaixam, apenas gestos. E ele sabia muito bem que cada movimento do seu corpo seria facilmente entendido pelo corpo dela. Pois eles eram um só, desde o começo. Ele podia sentir a frequência da respiração dela até mesmo de longe. Sabia bem a dor da saudade dela, porque era a mesma dor que sentia no peito. Eram únicos, completos num corpo só. E agora próximos, depois de tempos longe, provariam que nada mudou. E todo o resto – narrativa e quaisquer pensamentos do momento na sua mente – cessou, em um simples impulso de abraço. Encontrou o suor dela na própria pele, sentiu seu corpo se completar.

Homem-menino


Qual a idade da velhice? - Ubirajara Rodrigues



Aos 5 anos, órfão, tinha que ser homem, criar-se sozinho. Passava de casa em casa, limpava calçadas, ajudava no que pudesse para conseguir comida e banho. Aos 10 anos, era homem promovido a carregador de água do poço da vila para todas as casas. Sobrevivia, trabalhador. Aos 15 anos, sentia-se jovem, cheio de anseios por conhecimento. Saiu da vila e de carona em carona foi parar na grande cidade. Aos 20 anos, consegue se educar; da misericórdia de poucas pessoas, passou a ler e criar. O jovem homem, aos 25 anos, começou a trabalhar no seu próprio negócio – era gerente de si mesmo, único funcionário. Aos 30 anos, o negócio crescia; sentia-se mais jovem a fartar-se da independência conseguida.
Essa breve cronologia passava na mente do menino de 50 anos: empresário que pouco trabalhava, de pernas para o ar numa praia estrangeira, tranquilo a rir-se da velhice que viveu quando menino... E da meninice que sua alma leve agora se permitia.

Lembranças


Mynheer's Lunch - William Michael Harnett


Reuniu todos os pertences do seu pai falecido. Cada objeto era agraciado com memórias fortes, antes de ser depositado na caixa. O cachimbo ainda tinha vestígios do fumo queimado e cheiro de doença; a velha caneca de cerveja tinha nas dobradiças o escuro da despreocupada sujeira; o último jornal, com todas as letras ‘o’ pintadas – passatempo este que ela também pegou como mania; até mesmo os fósforos das esquinas da casa estavam ali para testemunhar os modos do seu pai. Era sempre bêbado, sempre bruto e sábio. Tinha sempre nos olhos o desejo de mais fumo e a vontade de ver sua filha feliz.
Agora jaziam dentro da caixa todas as lembranças de uma personalidade inesquecível. Ela tentaria, mesmo assim, esquecer, pois uma vez seu pai disse, depois de uma longa tragada no cachimbo: “Leve suas lembranças todas para o fundo de uma caixa e esqueça-as. Você não precisa delas para ser feliz.”.

Deficientes



Wind from the sea - Andrew Wyeth


Nascera deficiente; não podia andar, correr, viver fora do seu quarto; não tinha quem muito cuidasse dele, pois todos que moravam na casa tinham que trabalhar para fazer a família sobreviver. Portanto, vivia sozinho com poucas visitas. Enquanto isso, seu maior prazer era observar o mundo que vivia lá fora através da janela: o vento, as sombras dos pássaros que por ali sobrevoavam, as árvores distante e densas... Mas naquele dia observou algo novo: cinzas atravessavam a janela e pousavam no seu lençol branco. Algo estava pegando fogo, sendo destruído?
“Filho, vamos nos mudar rápido”, a mãe cheia de rugas entrou no quarto, apressada e preocupada. “O governo decidiu despejar a gente da nossa terra. Estão queimando as florestas para construírem alguma coisa...”. Foi nesse momento atordoado que ele viu pela primeira vez o mundo de fora do seu quarto.
Mais tarde, ele iria concluir que sentiria saudades do tempo em que não conhecia o mundo. Tempos difíceis seguiram-se desde então: desprezados, sem ter para onde ir, sua família ficou tão deficiente quanto ele mesmo – não sabiam para onde andar, correr, viver.

Desfrute



Danae - Gustav Klimt


Sentiu o frio na barriga, mas ainda assim deixou-se levar. O corpo foi passando da vergonha à liberdade. Todo aquele tremor nas pernas, aqueles afagos do peito e a escuridão dos olhos fixamente fechados construíam um momento de excitação único. Segurava-se para não deixar um arrepio percorrer o corpo, pois denunciaria sua fraqueza e todo sua entrega. Sim, estava se entregando de corpo e alma. Decidira o desfrute. Esperava que cada pedaço seu fosse descascado e agraciado. Decidira o prazer... Até que... Ah, os pensamentos se esvaziaram e apertou com mais força os olhos: de longe, uma luz queria penetrar a escuridão acolhedora da sua mente; de longe, um calor queria percorrer sua pele. Mas o sentimento que agora inundava seu íntimo era de repulsa - não queria aquela luz e aquele calor... Queria mantê-los longe, queria permanecer naquele leve desfrute... Aaaah...
"Acorde, Lolita! Já é tarde!". Abriu os olhos para o quarto iluminado e sentiu o calor dos raios do sol no seu corpo. Sentiu o amargo da insaciedade na boca e amaldiçoou seus sonhos. Todos aqueles sonhos... Só por simplesmente ainda serem sonhos!

Crises



Television - Julia Gilmore

Ligou a televisão para abafar os pensamentos da sua cabeça. Planejava ficar sentada,  afogando-se nos noticiários e propagandas, apenas para deixar suas crises próprias de lado. A jornalista loira e séria anunciava uma grave crise econômica no canal 4; o entrevistador do canal 5 perguntava algo sobre a crise de fome do norte da África; a propaganda do canal 6 deixava claro que o planeta está sofrendo uma drástica crise ambiental. Ela soltou todo o ar do pulmão e deixou um sorriso embalar os músculos do seu rosto. É, nada melhor do que ver que o mundo inteiro estava em crise – piores, talvez – para se sentir melhor e mais tranquila com suas crises amorosas. De crise em crise, o mundo ia sobrevivendo; de crise em crise, ela encontraria algum meio de também sobreviver.

Palavras indomadas


Saint Mathieu et l'Ange - Rembrandt Van Rijn


Os minutos se arrastam da mesma forma como a cera derretida escorre pelo resto da vela acesa frente aos meus olhos. Noite insignificante e calor escaldante invadiram há tempos meu interior. Com a mão armada a lápis e o corpo protegido pelo papel em branco, meus olhos refletem os anseios da minha alma... Palavras que gritam para não sair. Sim, são teimosas. Não querem me expor num branco qualquer. Querem gritar para o ar, translucido e leve. Registros são intoleráveis, mas eu ainda assim não desisto: passo as noites no claro de uma vela, buscando colocar aquelas palavras interiores em qualquer papel. Pois, bem sei, que só dessa forma, escritas, fixadas, as palavras não poderão mais brincar comigo; serão minhas e não eu delas; eu as usarei para o mundo e não o contrário. O papel e o lápis são minhas armas para eu conseguir o poder, para eu me pôr no controle.
E minhas noites transcorrem-se em lutas, em batalhas de palavras indomadas dentro do meu corpo de escritor guerreiro.

Auroras


Aurora na vila do conde - Augusto Amaral


Aurora nascia. A menina Aurora também. Sua mãe, a Rainha Aurora, sofria sem prender o grito. Suava nos lençóis de linho egípcio e gritava para todos do castelo ouvir. Estava sofrendo para pôr Aurora no mundo. A criança levaria seu nome, porque sua mãe morreria de tanto esforço e sangue perdido para o seu nascimento. Foram horas noturnas inteiras de esmero no parto, mas foi nos minutos breves da aurora do novo dia que a menina vinha à vida e levava sua mãe à morte. O Rei – velho, gordo e ausente ao sofrimento da sua esposa – não era o pai biológico da criança, pois sua apatia era tanta que não era capaz de fertilizar uma Aurora. Esta ao menos morria por uma criança fruto de um amor verdadeiro... Pelo jardineiro do castelo. Fertilizaram-se de amor.
O jardineiro observava a aurora nascendo e sentia dor pelo pressentimento da morte de sua Aurora, quando ouviu um choro que arrebentou o silêncio do novo dia. Aurora morrera.

Sombria iluminação


Titus vestido de monge - Rembrandt Van Rijn

Calado, observou o ambiente sombrio em que estava. Na verdade, a impressão deveria ser contrária: a de um lugar sagrado, de iluminação e conforto espiritual. Mas ainda não aprendera a dissociar seu espírito dos sentimentos do seu corpo. O mosteiro era isolado da cidade de onde ele viera; no meio do campo verde e do ar de liberdade da natureza, os muros marrons de barro se erguiam firmes. Sombrios. “Ah, larga desse teu corpo, homem...”, reclamava de minuto em minuto consigo mesmo, pois sempre aquele pensamento sombrio persistia! O problema da sua mente era não compreender como ali – um local sem cor, sem luz e claustrofóbico – haveria um meio do seu espírito progredir. Ele não queria aceitar o que todos aceitavam: o fato de que era necessário o sofrimento e a escuridão para alcançar o reino dos céus. Apesar de tanta incompreensão guerreando dentro dele, aquele monge permaneceria, por muito tempo, imóvel e calado, esperando seu espírito se iluminar.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.