Archive for junho 2011

Sem estrelas


Tango Argentino II - Willem Haenraets

Estava bem demais naquela noite sem estrelas. Pouco se importava com as estrelas na verdade; a poluição da cidade sempre lhe foi normal. As luzes da cidade o empolgavam. Bebeu mais um gole do dry martini e sentiu o coração acelerar naturalmente pela sensação que o líquido provocava  na sua garganta. Desencostou-se e foi lentamente, com olhar fixo, na direção dela. A noite, de certa forma, estava sim estrelada... Por conta dela. A música estava no ritmo certo, a bebida na temperatura certa, e seu corpo pedia mais... Sim, estava bem demais naquela noite. E o mais incrível de tudo era o olhar fixo dela. Ela não exagerava, mas também não deixava passar: estava interessada, quiçá mais do que ele mesmo.
Dançaram a noite inteira. Ele não a conhecia, tampouco ela queria conhecê-lo. Apenas se interessavam por aquela noite sem estrelas.

Adormecida


Flaming June - Frederick Leighton

Estava adormecendo e sentia isso com devoção. A sua vida era simplória demais a ponto de apenas restar-lhe a chance de dormir plenamente. Não tinha como explicar o porquê, os motivos de viver tão errantemente lhe pareciam sombrios. O fato era que, naquela sua época fajuta, mulheres viviam isoladas e viviam para nada. Sim, considerava todos os sonhos de seu pai para o seu futuro um completo ‘nada’ e não havia argumento que desconstruísse aquela sua realidade. Vivia, simplesmente. As manhãs eram pálidas, as noites escuras demais para serem descritas. Então, dormia. Tranquilamente, aqueles momentos soníferos eram o que queria da sua vida. Pois no sono não existe quem a manipule, quem a determine. Ela se determinava. Dormir era seu prazer, visto que a vida acordada era limitada demais para respirar na intensidade que ela ansiava. Dormia. Adormecida agora, sonhava.

Fuga


A lanterna de Kyle - Denyse Klette

A madrugada invadia o quarto. O silêncio sussurrava na sua pele. Estava na hora certa para acordar. Levantou, esfregou os olhos e saiu da cama, tendo o cuidado de não deixar o lençol no chão. Saiu do seu quarto e foi direto ao destino de todas as suas madrugadas. Como uma fugitiva, espiou todas as sombras da casa, de modo a não deixá-las saber que por ali ela passava. Diante da grande porta, respirou fundo e sorriu silenciosamente. Abriu a porta e esperou o barulho da ferrugem do trinco não assustar ninguém. Mas ela sempre se assustava.
Venceu o percurso de sua fuga. Alcançou seu maná dos deuses. Diante de si, a biblioteca de seu pai se expandia. Deixou um sorriso sonoro escapar – nunca conseguia prendê-lo diante daquele momento. Agora, buscou o livro que começara a ler há duas semanas. Essa seria a madrugada da conclusão. Aconchegou-se e pôs-se a ler.
Na calada da noite, aquela menininha, sem consentimento dos pais, era feliz. De página em página, se deliciava com a vida.

Nublados


Urban Reflections - Myles Sullivan

Queria que aquele momento tivesse trilha sonora. Arpas, flauta doce, som do vento... Mas nenhuma orquestra estava próxima, nem o tempo cooperava.  Mesmo assim, lá estava ela, sentada no banco da praça, esperando-o. Com passos leves, então, foi se aproximando. Seu coração acelerado. Haveria de dar certo seu plano. Ela era a mulher da sua vida. “Olá...”, disse sorrateiramente, sentando-se ao lado direito daquele corpo delgado que tanto ele desejava. Pôs o braço por cima dos ombros dela, sorrindo... 
Mas, de algum modo, seu sorriso murchou. O nublado do dia preencheu o calor que carregara, até pouco tempo atrás, no peito. Sem olhar para o rosto dela, percebeu que aquele nublado também a perturbava. Esquecera seu objetivo; pôs-se a refletir sobre o nada daquele instante, ao lado daquela mulher fria.
Ambos permaneceram incomuns ao tempo. Observaram o nada passar. Não haveria orquestra alguma que os retiraria daquele estado absorto da alma. Agora, mais do que nunca, eram feitos um para o outro: partilhavam na essência o poder de estarem juntos, mas sozinhos.

Criança demais


A pureza - Miza

Era criança demais para os pais perceberem que entendia tudo. Mas entendia. Não havia historinhas de quadrinhos ou contos de fadas que encobrissem. As coisas dentro de casa eram reais demais que acabavam apagando as fantasias de sua infância. Se tivesse uma voz mais grave, levantaria, ousaria assim como uma super-heroína faria. Mas não percebia, ainda, que sua voz aguda e baixa era suficiente para acabar com as lamentáveis discussões.
Era criança demais, mas já desejava muito. Ajoelhava-se e pedia a Deus – aquele homem que a sua mãe ensinara a confiar todos os seus sentimentos – que não a tornasse um adulto daquela forma. E se fosse preciso crescer, que crescesse melhor. Por enquanto, tinha que fingir não entender nada. Suas orações eram contidas, sem pressa.
Seus pais eram mais crianças do que ela. Mas isso, ela ainda era criança demais para entender.

Em tempos de guerra


Summer interior - Edward Hopper

A insônia dormia junto com ela novamente. A cidade estava calada. A sua rua, vazia. Os seus olhos despertos fixavam-se no teto. Cansara das orações, dos pedidos, súplicas afogadas em lágrimas. Olhou para o relógio no criado-mudo: 04:43. Naquela hora seu filho, seu marido e seu amante estariam em solo inimigo. A guerra já estava no seu vigésimo terceiro dia, cada vez mais banhada em sangue. A estratégia dessa madrugada fora anunciada no telejornal das oito. Ficara assombrada. Seus amores guerreavam, obrigados. Os três deixaram para trás ela, sozinha, com o coração na mão. Cada dia aumentava a falta do amor filial, do amor companheiro de seu marido e do amor ardente do seu amante.
Olhando o teto branco do seu quarto, insistiu na súplica: que a guerra acabasse e que os três homens da sua vida voltassem, ou ela mesma morreria.

A vidente


Cigana - Orlando Santos

“E o que eu faço com essa dor no peito?”. A moça realmente parecia aflita, mas novamente eu tinha que buscar uma sábia frase para despertar a atenção e curiosidade dela por um bom período, para assim, quem sabe, a fazer esquecer um pouco as mágoas do amor. Disse, com aquela minha voz pausada e convicta – a qual agradeço por me proporcionar o poder de parecer realmente uma cigana e vidente:  “o mar sem o vento não se moveria, assim como o corpo sem a dor não se renovaria”. A moça parou, boca entreaberta, pensativa. Eu pacientemente esperei até ela se conformar com o destino dela, que no fundo eu não entendia. E, então, funcionou... Da mesma forma como sempre funciona. Ela sorriu triste, entregou o dinheiro pela consulta, agradeceu-me e saiu da tenda.
Guardei o dinheiro na bolsa; também agradeci, porém, pelos problemas dos outros. Sem eles, não sobreviveria. Esperei pelo próximo cliente. Qual seria o próximo ‘coração partido’, ‘amor encerrado’, ‘destinos mal escritos’?

Uma decisão




Mulberry Tree - Vincent Van Gogh

Finalmente alcançou o tronco da árvore. Sentou-se. Fechou os olhos, como sempre fazia, mas agora com uma sensação diferente. Não era mais aquela menina indecisa que estava ali; era uma senhora, mãe e avó, dona de casa, esposa e empresária. Estava velha e doía reconhecer isso, agora, tão tarde. Lembrou-se da última vez que se sentou debaixo daquela árvore para pensar na sua vida e decidir quais caminhos seguir. A questão a ser decidida, da última vez, era fácil perto da atual. Hoje, depois de fugir das responsabilidades de casa e do trabalho, ousou pegar a estrada e voltar para aquela fazenda abandonada, só para ali se sentar. Abriu os olhos. Agora tinha que decidir: morrer ou não? Recebera, não fazia mais de uma semana, da boca de seu médico, o ultimato. Estava velha e a velhice não poupa a vida. Tinha que contar à família, prepará-los e deixá-los em paz para, então, ela realmente morrer. 
Em parte, na verdade, a morte não era uma decisão. Estava ali, ela e o resto de toda a sua vida, debaixo daquela árvore, somente para decidir se fora feliz o suficiente para morrer em paz. Um vento soprou alguns fios grisalhos de seus cabelos. É, estava pronta para morrer. Doía, não somente largar toda a vida, mas especialmente aquele lugar... Aquela árvore marcou a menina, a moça, a mulher e agora a velha que escreveu uma história. Era hora de dizer adeus à árvore de sua vida.
Levantou. Saiu.

Mudança


Mulher ao espelho - Pablo Picasso

Desceu do salto. Soltou o penteado. No espelho, seus olhos não eram mais aqueles altivos e firmes de algumas horas atrás. A maquiagem borrada denunciava seu desequilíbrio emocional, sua fraqueza, sua sensibilidade atingida. Por que havia ela de suportar toda aquela imagem? Não. Decidiu falar. Expos tudo o que lhe importunava. Jogou a imagem construída, em tantos anos, fora. E, apesar de ter deixado tudo para trás, se libertou. E era assim que queria viver a partir de agora. Jogou o salto para o lado. Limpou o rosto. Enxergou-se do jeito que sempre quis se enxergar. Agora sim, era feliz. 

Sertanejo


Sertão - Mauro Andriole

Levantou em um salto. A testa suada. Seu lençol de trapos estava jogado no chão. Ao certo o pesadelo o fizera se mexer demais. De novo aquele sonho anormal o assaltava. Servia de despertador. Já era dia. Mas no sonho, o dia era branco morto. Do céu caíam pedacinhos brancos da nuvem. O dia era apagado. O céu chorava; tanta água que não acabava. E ele estava todo enrolado em panos, como se desejasse esquentar o corpo. E o sol? Era uma luz longe, detrás de tanta nuvem escura. “Será o inferno, santo pai?”. É, com certeza não haveria lugar na Terra que fosse daquele jeito. Acomodou-se na soleira da porta de sua casa de taipa, observou o dia claro, o horizonte alaranjado daquele sertão bonito. “O mundo só pode ser assim, vivo, ensolarada, sô!”. Fechou os olhos e começou a rezar. Afinal de contas, não queria ir parar no inferno, naquele lugar sem sol, com as nuvens se desmanchando e água caindo do céu.

Entrou em cena


Teatro (Romeu e Julieta) - Tenini

Lá estava ele, e ela já previa sua fala, assim como também possuía um texto em mente. Ele começou; entonação sensitiva, olhos aguçados, movimentando-se quase pendularmente de uma perna a outra. Explicava-se. Na noite anterior, ela ficara sozinha. Na noite anterior, ela relembrou todas as outras noites anteriores que ficara sozinha, completamente a se sentir fora de cena. A imaginar cenas. Todas as manhãs, no entanto, lá estava ele a se explicar. Terminou. Ela parou, pensou como se não tivesse pensado tantas vezes antes. Depois de um profundo suspiro, dinamicamente entrou o corpo dela em movimento. Buscou a melhor expressão facial. Beijou-o no rosto e deixou claro, apenas com seu olhar teatralmente treinado: ela havia se cansado. "Acostumei-me sozinha. Desculpe, mas agora não há por quê estar acompanhada". Deixou um simples sorriso surgir no canto da boca. Fez mais uma jogada cênica: parecia estar tudo bem. Ela, porém, sabia que estava tudo mal. Ele não sabia, nunca soube como estavam as coisas.
Ela pegou o roteiro e saiu do camarim. Tinha uma peça de teatro a comandar, menos trágica, menos real que esta, então, acabada.

Amarelado fogo


"A atriz de ópera"


Acordou apressada outra vez. Ainda não havia aberto os olhos para o dia, mas já percebia que  teria que esquentar rápido o leite, enquanto colocava os papéis dos trabalhos da noite e madrugada passadas na sua pasta; o leite acabaria queimando sua boca, assim como os papéis acabariam amassados. Mesmo assim, acordou. Decidiu, então, abrir os olhos. E... Não, definitivamente aquele dia não seria igual aos demais. O seu quarto gritava luzes do sol, de tamanho modo nunca antes percebido. Como nunca havia parado e observado a luz do dia? Sorriu; enfim, pôs os pés no chão gelado, muito lentamente, como se excepcionalmente aquele dia fosse único e ela não estivesse atrasada. Sorriu, dessa vez deixando sair pelos seus lábios aquele som divertido que há tempos não ouvia. Sentiu-se luz. Sentiu-se fundir ao amarelado fogo do sol que invadia seu quarto. Sentiu-se humana...

Olhar orfão


Bruno Amadio


"Por que é tão breve a alma?", perguntaram-se aflitos os olhos do pequeno garoto quieto. Descia aquela caixa de madeira lustrada, sob música pausada e melancólica, na terra bem cuidada daquele lugar cheio de cimento, mármore. Era pequeno demais e, um tanto por isso e por sua falta de compreensão, não soube ouvir a pergunta de seus olhos; tampouco saberia responder. Um adulto que o encarava triste e preocupado teria percebido a irrefreável dúvida daqueles olhos infantis, porém, por ser adulto, não tinha mais a sensibilidade - motor que moveria a perspicácia do apelo do menino. E aquele dia triste, por falta de compreensão e sensibilidade, terminou mais uma vez vazio. Vazio daquilo que só os olhos do pequeno órfão souberam questionar.

Renascer


Abraço Em Tom De Azul - Manuela Pinheiro



Ele voltou, abriu a porta, olhou fundo nos olhos dela e disse: desculpe, precisei ver seu amor morrer para saber que é hora de ir. Calmamente, recompôs-se. Está na hora de nascer. E então, o amor brotou no coração dela diante daquele olhar profundo. Morrer? Que nada. Quem disse que a morte é o fim? Sorrateiro, o amor sorriu e pediu desculpa à alma dela por insistir em brincar. Entendeu-se, então, o que morre realmente não volta. O que volta é muito maior. A pele arrepiou, ela deixou uma lágrima cair. Ela abraço-o, firme, e agradeceu calada por ele ter voltado. Ele agradeceu calado, não a ela, mas ao amor, por insistir em brincar.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.