Archive for 2014

O vazio no olhar


Lady Beatrice - George Clausen

Ela tinha o vazio nos olhos. Ninguém conseguia olhar para ela sem perder, nem que seja por um instante, o ar. Algumas pessoas simplesmente não conseguiam trocar palavras com ela. Outros gaguejavam. E a técnica mais usada por aqueles que com ela mais interagia era: evitar encarar o olhar daquela moça. Mas a moça não notava esse poder que possuía, de causar tamanha surpresa nas pessoas. De tirar o ar dos outros. Ela não sabia que carregava o vazio no olhar. Pois nunca teve a chance de encarar seus próprios olhos. Nascera cega. Com olhos num cinza opaco. E vivia com a impressão de que os seres humanos são, por natureza, silenciosos. Porém, o que ela nunca saberia era que, por natureza, o vazio é algo difícil de encarar. 

História real



The pages of time - Shiori Matsumoto

A pequena princesa passava dentro de um carro blindado e discreto, para não chamar atenção. Observava as tantas pessoas que por ali circulavam, tiravam fotos, exaltando aqueles monumentos. Sabia que aqueles prédios ornamentados e aquelas artes monumentais, espalhados pela cidade e tão famosos no mundo inteiro, foram erguidos e projetados em homenagem aos seus antepassados da realeza a que pertencia. Eram presentes e honrarias conseguidos graças às riquezas dos antepassados da maioria daqueles tantos turistas. Sabia que houve muita exploração para que a sua cidade fosse tão brilhante e encantadora como hoje o mundo a considerava. E, apesar disso, lá estavam todos aqueles turistas apreciando, aplaudindo e rindo diante desses monumentos da sua família real. Esse fato ela sempre observava, mas nunca conseguia compreender. Ela não encontrava lógica na história. História essa a que ela, sem querer, pertencia.

Solução racional


Long day - Ed Hofer

Ouviu os pais dizendo que teriam que tirar o Bob de casa. Arquitetavam a ideia de levá-lo para um lugar bem distante, soltar a coleira e deixá-lo para trás. Pelo o que ele entendeu, já não havia espaço para cachorro grande naquela casa. O menino-adolescente retornou pensativo para o quarto, onde encontrou seu querido Bob. Enquanto o cachorro saltitava alegre aos seus pés, ele pensou no quão triste era aquela ideia. Bob era um simples cão, que desde filhote vivia ali na sua casa. Pensou no potencial racional que Bob tinha, então: como ele iria se virar para sobreviver? Para se abrigar das chuvas? Para se alimentar? Onde teria água limpa para beber? Não achava aquilo justo, jogar na rua um ser que nem pensar direito sabia. Logo, encontrou uma solução.
No outro dia, a mãe foi acordar o filho e encontrou a cama vazia e um bilhete com a seguinte mensagem: "Já que a casa não tem mais espaço para um cachorro grande, imagina para um homem que cresce muito mais que um cachorro. Cuidem do Bob. Eu saberei me cuidar". Bob, aos pés da dona, não saltitava alegre.

Tempos saudáveis


Cakes - Wayne Thiebaud

Na capa da revista a manchete principal anunciava uma vida saudável através de um novo modo de nutrição, sem açúcares. A senhora baixou a revista e olhou a bandeja de doces artesanais postos à venda. Uma receita passada de geração em geração. A fama que seu sobrenome carregou desde a muitas décadas. Mas agora jaziam todos os doces sem nenhum cliente para apreciá-los. Jazia a fama de doceiras com seu sobrenome. Tudo por conta de uma tal vida saudável... Como se ela, todos da sua família e de épocas passadas não tivessem tido uma vida saudável. E ali ficava, todos os dias, na espera de uma venda sequer. Entristecida, por ela viver naqueles novos tempos. Tempos "saudáveis". Tempos amargos.

Sem mãos dadas


Preludio para una nueva era - Denis Nuñez Rodriguez

Ela dispensou a mão que a mãe, carinhosamente, ofereceu. Atravessaram, sem mãos dadas, a rua. Aquele ato fez a mãe desabar dentro de si. Nos últimos dias, a menina, que nem doze anos tinha ainda, já se negava a dormir com a mãe, a pedir ajuda no banho, a convidá-la para passear e agora nem andar de mãos dadas queria mais. Não demoraria muito para que a filha largasse os brinquedos, escolhesse as próprias roupas e saísse sem dar motivos... Já que nem ajuda precisava para atravessar uma rua. Esse pensamento fez a visão da mãe, sem querer, embaçar, cheia de lágrimas. Ela não sabia prever qual seria a próxima oportunidade que teria para andar de mãos dadas com sua pequenina garota. Talvez na sua velhice, quando fosse ela quem não pudesse caminhar sozinha. E, além disso, quando a filha voltasse a se importar com aquele simples ato de dar as mãos.

Jantar à luz de vela?


A dinner table at night - John Singer Sargent

Naquela noite, ela estava sozinha entre casais. As conversas eram intermediadas por um beijo de um casal aqui, um abraço cheio de desejo do outro casal ali. Depois de alguns copos de vinho, um deles a questionou se ela não se incomodava de estar ali, "servindo de vela" para eles. Ela muito calmamente respondeu que não. Que quem devia se incomodar eram eles, pois aquela "vela" - que ela estava sendo - permanecia apagada, sem tornar o ambiente caloroso nem romântico. Sem entender, eles pediram explicação. Ela, risonha e saudosa, explicou que o "fogo" que a acendia não estava ali, mas sim em outro lugar. E sem seu fogo - seu amado - ela era vela apagada. Quem estava pior afinal: os casais sem uma vela a queimar ou a vela que esperava pacientemente o dia de queimar plenamente? Envergonhados e descontraídos, continuaram a beber seus vinhos.

Exercícios mentais


And the Bridegroom - Lucian Freud

A cada amanhecer, ela olhava o marido ao seu lado e se imaginava sem ele. Aquele exercício mental a fazia acordar sempre com os sentimentos de afeto renovados,  porque imaginar-se sem ele era doloroso demais para ela. A cada anoitecer, o marido observava a mulher pegar no sono e pensava que teria que ver aquela cena pro resto de sua vida. E sentia aquilo como uma rotina tediosa demais para suportar por tanto tempo. Logo, esse exercício mental dele foi destruindo o casamento. Acabaram se divorciando.
Divorciados, ela superou os fatos mais rápido do que pensava, pois aquela sua imaginação de outrora a tinha treinado psicologicamente para o pior.  Enquanto ele passou a sofrer pelo caos que ele mesmo provocou: sentiu falta daquela rotina segura que tinha e que, por pensar que seria para sempre, acabou destruindo.

Realidade julgada


Girls will be girls - Anita Kunz

Sentada no banco da praça, a moça notou: de um lado havia uma mulçumana e de outro, uma freira. Ambas com somente o rosto à mostra, devido às vestimentas características de cada uma. Seu juízo crítico, não se contendo, pensou no quão triste era estar na posição da mulçumana - imposta a se vestir daquele modo - e louvou a freira, que com certeza escolheu seguir aquele caminho de devoção. Fora dos pensamentos da moça, a realidade sussurrava a felicidade da mulçumana, que um dia, em busca de uma fé a seguir, conheceu a religião e cultura islâmica e decidiu seguir aqueles costumes que julgou honrados. Já a freira guardava dentro de si todos os seus desejos reprimidos de fugir do convento, onde foi deixada pelos pais, em cumprimento a uma promessa qualquer - promessa essa que sempre julgou errada. Juízos à parte, a realidade continuava sussurrando.

Nova batalha


Emociones - Juan Miguel Palacios

Cansou de retocar a pintura dos fios de cabelo. Deixou de rejeitar as doses e comprimidos diários. Cansou de reclamar de hora em hora das dores no joelho. Acabou com a vergonha de sorrir largo e deixar a dentadura meio solta na boca. Deu fim ao incômodo de tirar fotos e de ver registradas suas tantas rugas. Deixou para lá todas essas batalhas medíocres contra a velhice. Reconheceu que a maior e mais essencial batalha que deveria travar era contra a caduquice, a implicância, o sentimento de ser fardo e todos aqueles estigmas da velhice. Armou-se com o orgulho de sua idade. Muniu-se de amor próprio. Partiu para aquela nova batalha.

Tabuleiro em construção


Evgeniy Monahov


A morte é algo realmente desconsertante. Não dá para viver só pensando nela. Tampouco dá para viver sem pensar nela. Se se vive pensando na morte, não se tem sossego na mente para desfrutar das felicidades que surgem na vida. Se se vive sem pensar na morte, não se dá o devido valor a essas felicidades. A morte é coisa que não se pode exagerar, nem menosprezar. Ela vem e vai, quando em vez, para te lembrar que nada é constante. Ela vem, desconserta algo aqui, retira uma peça do tabuleiro da vida, e deixa espaço para os vivos consertarem. Para que provem suas capacidades de reconstruir. E seguir construindo e reconstruindo, com a medida certa de consciência da morte, até que seja nossa vez de sermos retirados desse tabuleiro em construção.

Filtro de sonhos


The dreamcatcher - Emma Bazan

Desde o dia em que tatuou um filtro dos sonhos na pele de suas costas, nunca mais se envolveu em romances. A princípio, julgou ser preconceito dos homens com relação às mulheres tatuadas. Passado um tempo, pensou que estivesse em uma fase de solteirisse. Mas anos se arrastaram sem nenhum relacionamento se manter por mais de um dia e, então, começou a se questionar se seria aquela tatuagem que estava afastando-a de viver os pesadelos que eram os relacionamentos mal sucedidos de antes. Cansada da solidão, voltou ao tatuador e mandou desenhar uma paisagem qualquer por cima daquele filtro dos sonhos. Preferia viver a ilusão dos romances, e pagar sofrendo com os pesadelos dos finais, do que viver sozinha, à espera pelo sonho de um eterno amor verdadeiro.

Oração esperançosa


Aunt Dale in Contemplation - David Jon Kassan 

Subiu as escadas e se recolheu em um canto onde ninguém costumava ir. Entrelaçou os dedos das mãos, com força. Permaneceu de olhos abertos, para se certificar que ninguém se aproximava. Começou a sussurrar uma oração - ou ao menos era o que pensava ser aqueles versos que aprendera quando ainda nem sabia o que era a vida. Mas agora que sabia o que era a vida e sentia tão perto o perigo da morte, queria acreditar que aquela oração surtiria efeitos. Há muito que a tradição de fé havia se tornado minoritária. Os jovens eram crentes da ciência. Assim ela também o era... Até que recebeu a notícia de que a ciência não a salvaria. Então resolveu orar, porque as soluções dos mais novos, por mais racionais que fossem, não estava levando a lugar algum. Quem sabe a solução dos antigos resolvesse seu problema? Entre um mundo de fé e um mundo de ciência, ela ainda pertencia ao mundo dos esperançosos. Para ela, não importavam os meios. O importante era o fim: não deixar sua vida chegar ao fim.

Carta de desapropriação


La pasión II - Alberto Pancorbo

Tive que te deixar. Não suportava mais minha mente me importunando com mil questionamentos sobre ti. Questionamentos esses que não sei responder. Faz-te de enigma na minha vida e o que ganhas com isso? Ganhas um adeus! Cansei de viver perdidamente apaixonado por uma mulher que não compreendo inteiramente. E cheguei a essa conclusão, de que eu teria que te deixar, quando compreendi que a sensação de não te ter vem exatamente do fato de tu não ser do tipo de mulher que se tem. Ninguém pode te possuir! Tu não nasceste para ser propriedade. És proprietária em toda a tua essência! E isso me assusta... Como ficar com uma mulher que não compreendo por inteira? Que me surpreende? Que me possui? Minha mente não suporta esse amor todo! Por isso te deixo aqui. Ao menos levo comigo um amor que eu sinto e conheço bem: o meu amor por ti.

Fotógrafa da realidade


About a girl - Emma Leonard

Colocou o seu olho esquerdo na mira da câmara e esperou pelo momento certo. Desde os quinze, ela se aventurava naquela arte de estacionar no tempo os momentos. E eram exatamente aqueles momentos que corriam espontâneos - soltos, livres, sem qualquer intenção - que ela buscava estacionar. Na sua frente, as pessoas não eram modelos. A última coisa que desejava era poses formuladas, sorrisos-estátuas, olhares sem brilho pelo tempo que passavam vidrados, sem piscar. O que sua lente mais ansiava eram os movimentos, o desconserto das expressões que viviam, o ângulo natural de um sorriso torto, aquela brincadeira real que surgia... Era a realidade que queria fotografar. Por mais desafiador que fosse, tudo era recompensado pela alegria sincera que transbordava das pessoas depois que elas, no fim, com as fotos em mãos, recordavam aqueles momentos, jeitos e sentimentos únicos ali registrados. E sempre, diante dessa recompensa, ela reafirmava que aquela era a sua missão.


Para (e inspirado na) Kívia Rodrigues.

Ambição própria


Caretaker - Sally Storch


No caminho para deixar os filhos no colégio, ela passava sempre em frente a uma imobiliária. Parava diante da vitrine e ficava observando uma maquete de uma grande casa. Deixava alguns minutos de seu dia passar ali, parada, a reforçar dia após dia aquela sua única ambição: ser proprietária de uma casa. Sempre viveu de aluguel. E viver na casa dos outros era algo com o qual ela nunca se conformava. Mas o marido, que possuía um salário muito baixo, afirmava que eles deveriam investir na educação dos filhos e não numa casa própria. Ela concordava, com a esperança que os filhos, no futuro, retribuíssem o esforço dos pais, dando a estes uma casa para chamar de sua. E repetia, sempre que podia, esse encargo aos meninos. Ela só não notava a indiferença deles, que sempre passavam direto pela imobiliária, sem nem ao menos olhar a vitrine. A mãe não compreendia que cada um já tinha suas próprias ambições para perseguir.

Eternos planos




Seek - Iyan de Jesus

Tinha marcado no celular uma porção de despertadores, que nunca a acordava. Na estante do quarto, tinha um tanto de livros, que nunca lera. Guardava todas aquelas calças, que antes vestia bem, porque tinha planos de começar a dieta logo amanhã. Na bolsa, carregava sempre aquela agenda, com listas de tarefas - que nunca conseguia completar e passavam sempre para o dia seguinte. Eram tantos os seus planos que nunca se concretizavam. Mas nem por isso, ela se deixava desanimar: mantinha uma profunda fé no amanhã. Ainda que fosse mais um de seus eternos planos "ter mais fé na vida".

Bossa nova


El inicio - Luz Letts

Ele era todo bossa nova. Nada de assuntos críticos. Nada de preocupação com a vida social. O máximo de vida social que ele se permitia pensar era a troca de palavras com as pessoas da vizinhança, os colegas do dia-a-dia, os amigos de longa data. Vivia na calma de um samba tranquilo, num ritmo de barquinho que vai, enquanto a tardinha cai. E quando o assunto era sofrer, ele sofria com a devoção de um eterno apaixonado, sem deixar de mandar sua tristeza atrás de sua amada e pedir que esta regresse, para dar fim a qualquer saudade. E por ser todo bossa nova é que ela era inteiramente entregue à ele, pois fundamental era mesmo aquele amor.

Passado e ela



Close your eyes - Wlodzimierz Kuklinski

Virou as costas. Retornava para o presente. Mas ficou sentindo os olhos do passado a acompanhá-la. Insistentes e pesados olhos. No caminho do retorno, ela se sentiu triste, extremamente pesada, como se cada passo tivesse que levantar toneladas de ressentimentos do passado. Este que a culpava por não ser o presente e que dizia que, não importava o futuro, sempre estaria presente. Ela, que não tinha culpa alguma, continuava na luta do passo-a-passo. Todos esses ressentimentos frutos da falta do entendimento de um fato: todos eles – passado, presente e ela – eram brinquedos da Vida. A Vida que brinca sem dó.

Enfim, amor!



The passenger - Paul Roberts

Parei no caminho para observar aquele momento. Ela dormia no banco do carro ao meu lado. Não era um sono perfeito, daqueles de princesa em filme romântico. Era uma boca entreaberta, uma respiração pesada, a cabeça meio torta para o lado. Mas estava linda. Era a imagem que eu havia esperado presenciar ao longo de toda a minha vida. Eu estava sendo o felizardo ao presenciar seu momento de sono, frágil e íntimo. Agora era eu! Depois de tantos outros viverem ao lado dela, agora ela, finalmente, está nos meus braços. E a felicidade, enfim, se instalou na minha vida. Voltei minha visão para frente e segui aquele longo caminho, com minha amada vítima sequestrada e dopada ao lado.

De portas fechadas


Sem nome - Alejandro Boim

Feche a porta. Era o que a placa pendurada na porta sussurrava para quem passava. Era uma medida encontrada por ele para deixar ali guardadas todas as melancolias que ele vivia. Não queria compartilhar suas mágoas. Ele gostava de ser o único a sofrer por ali. Pois sofrer tem lá suas vantagens. Desde que, ainda muito pequeno, foi diagnosticado com depressão, nunca mais recebera sermões raivosos do pai, nem obrigações domésticas da mãe, tampouco podia ser maltratado pelos irmãos. A depressão era o que assegurava toda a atenção, o carinho e os privilégios que achava merecer. Por isso, cultivou uma série de melancolias ali no seu quarto. E fechava a porta para qualquer motivo que afastasse suas mágoas.

O presente do futuro



Lovers in the lilacs - Marc Chagall

Eram muitas expectativas dentro de si, que doía respirar. Era muita palpitação para um só coração. Eram sonhos demais dentro de uma só mente imaginativa. Cansava viver assim tão intensamente, sempre de olho no futuro. Até que conheceu um outro coração palpitante. Seu salvador. Aquele que conseguiu trazer o olhar dela para o presente. O presente que era ele. Presente que o futuro - tão desejado por ela - reservou. E ela recebeu de mente aberta, coração acelerado e respiração arfante, aquele presente. Compartilhou com ele seus sonhos, expectativas e palpitações. Passou a viver de forma menos dolorida. De forma mais vivida.

Tonta


Bristol - Gaetan Henrioux

No ar pairava uma fumaça. O apartamento cheirava a erva queimada. A cabeça estava leve. Tonta. Pensou que, se a vissem assim, talvez seus pais a chamariam de tonta. E ela riu. Agora, pela primeira vez, eles acertariam o adjetivo. Estava tonta, sim. Tonta de tanta liberdade. Depois de uma vida inteira presa àqueles padrões sociais, se desfez das amarras da vida que seus pais queriam que ela vivesse e agora estava entregue à paz daqueles que pouco se importam com a vida. Agora, ela pairava livre no ar, como aquela fumaça que observava ali em cima da sua cabeça. Leve. Tonta. Livre.

Recomeçar



L'origine du monde - David Agenjo

Acabava seu sétimo namoro. Além do desgaste emocional, da falta que aquele companheiro faria, do processo de se desacostumar... Ela sentiu um profundo desinteresse em recomeçar. Conhecer outra pessoa, entender outros costumes, se amoldar a um novo corpo... Tudo parecia desgastante demais. E, então, desistiu. Desistindo, decidiu. Recomeçaria, mas consigo mesma. Se conheceria, descobriria seus próprios costumes, definiria seu corpo. E sem mais desgastes, pois ela não se abandonaria. E isso haveria de bastar, enfim.

Confidências


Sem título - Rob Hefferan


Trocavam confidências em silêncio. Ele a queria. Mas não podia. Ela não o queria. Mas podia. O não querer dela era superado pelo desafio de ficar com um homem proibido. O não poder dele era superado por um desejo acima do normal de possuir aquela mulher. Mas aquele misto de sentimentos, recíprocos ou não, não eram suficientes. Nem ele tinha coragem de se envolver com algo proibido. Nem ela demonstrava interesse demais, para não parecer por demais envolvida. Assim, ficavam ali, trocando confidências em silêncio. Pois era o que lhes restava.

Dona do crime perfeito


Tess II - Fabian Perez

Só tinha uma forma de liberar toda aquela energia que pulsava dentro dele. A forma era complexa, mas harmônica. Umas curvas aqui, umas entrâncias ali, um conjunto todo humano. Um todo feminino. Mas bem específico. Era uma forma que só aquela mulher tinha. Ela era dona da única forma de libertá-lo. Ela era o único remédio para aquela sua pulsação. Ou ele eliminava aquela energia louca, ou iria explodir. Explodiria e morreria. Morte matada. E ela bem sabia dessa sua exclusividade. E adorava isso. Mas não se entregaria. Queria vê-lo explodir. Queria matá-lo. E não se preocupava com isso, pois sabia que depois de morto, ninguém iria incriminá-la. Ser a única forma de prazer de um homem, e usar isso de má-fé, ainda não era criminalizado. Era o "crime perfeito". E ela era dona disso.

Carta branca



Reader, Flowers in her hair - Henri Matisse

Dobrei uma folha em branco, coloquei no envelope e enderecei para a sua casa, meu bem. Agora – enquanto a carta branca deve estar percorrendo ruas vazias e ruas movimentadas, a caminho do seu caminho – escrevo aqui essas palavras, nesse pedaço de papel de um velho diário, sem data, sem ano... Só para assegurar que, em algum breve futuro, quando eu estiver curada desse meu sofrimento, eu possa retornar a essas páginas e aqui ver escritos todos os sentimentos que eu poderia ter escrito para você. E não escrevi. Não para você. Mas os deixei registrados aqui, só para mim. Pois, meu bem, você não merece os meus sentimentos. Não por esse sofrimento todo que você me causa. O máximo que merece é uma carta branca. Repleta de um vazio similar ao que você deixou em mim.

Relacionamento interessante


The bed, the chair, the dancing watching - Eric Fischl

É desolador ver dia após dia minha velha companheira se esforçar tanto para manter nosso relacionamento interessante. Tem dia que amanheço com ela entre minhas pernas, debaixo dos lençóis. Tem tarde que ela me serve uma taça de vinho com a esperança de esquentar o sangue para a noite adentro. Tem noite que ela se fantasia toda, finge ser o que não é, ser o que todo homem adoraria ter – de acordo com as revistas femininas de autoajuda. Mas eu nunca pertenci a esse “padrão” masculino. O tempo não mudou meus apetites... E é diante desse fato que mais me entristeço: por que razão minha esposa passou a me desconhecer? O que a faz pensar que mudei para eu a querer mudada? Será a velhice e sua perda de memória? Será a rotina e sua ânsia de mudar e enfraquecer os relacionamentos? Não sei. Só sigo a observando, até ver aonde tudo isso vai nos levar.

O fenômeno do fermento


Saturday Afternoon in a Girl's Life - Jeffrey Beauchamp


No domingo, foi para cozinha com a filha de cinco anos fazer um bolo de chocolate para alegrar o dia. Pediu para a menininha que a ajudasse, procurando pelo pequeno pote de fermento. Muito esperta, a menina achou rápido e logo questionou para que servia fermento. Pacientemente, a mãe explicou que uma pequena colher de fermento fazia o bolo crescer. O fenômeno da fermentação foi assistido por ambas. E o domingo foi pura delícia.
Na segunda, depois de voltar do trabalho, a mãe procurou pela filha e a encontrou toda suja de pó branco. Mas o que era aquilo? A menina, pacientemente, explicou para a mãe que era o fermento que ela derramou em cima de si mesma com a expectativa de crescer rápido. Diante daquela inocente cena cômica da filha, a mãe sorriu triste. Uma tristeza por saber que, já tão novinha, a filha já desejava crescer. Abandonar a infância. Sem saber que o resultado do fenômeno do crescimento humano não é assim tão fácil. Nem tão delicioso.

Esmola desumana



Contadina - Ciro Morrone

Sentiu aquela sensação tensa que paira no ar quando aparece uma velha senhora pedinte, contando alguma história muito triste, suplicando por alguma ajudinha – qualquer que seja. Percebeu aquele orgulho calado das pessoas, que negam dar qualquer que seja a ajudinha, acreditando que estão sendo cidadãos ao deixar de perder alguns centavos para alguma esmola. Constatou a falsa filosofia social da esmola como fator de incentivo à pobreza. Uma tese toda para reforçar a destruição da solidariedade humana. A declaração de extinção do altruísmo. O amansar dos egos cívicos. Notou o desamparo da velha pobre senhora. E, mesmo assim, nada fez. Seguiu com sua cidadania forjada.

Nas ruas


Suspended - Christopher St. Leger

Ninguém nunca parou qualquer caminhada para lhe perguntar a razão para ele ter ido parar ali, nas ruas. Se perguntassem iriam se espantar. Na verdade é inacreditável pensar em alguém que abandonou tudo o que possuía para viver de nada. Viver no nada. Mas foi isso que ele fez e assim que vivia. Como mendigo, ele não tinha casa para cuidar, pessoas com quem se importar, contas para pagar. Apenas precisava sobreviver dia após dia. E tinha a possibilidade de mudar a rota quando bem desejasse. E tinha todos os variados comportamentos alheios e situações diversas para observar e quebrar sua rotina. Observava aquelas pessoas indo e vindo e nenhum sentimento de inveja lhe surgia. Aquela era a vida que sempre havia desejado. Nas ruas, viveria e morreria.

Teatro solitário




Conversation - Zack Zdrale

Era ator de teatro. Não só dentro, mas também fora do palco. Costumava usar a técnica teatral de se despersonalizar no dia-a-dia, sempre que surgiam situações complicadas ou sentimentos indesejados. A cada notícia ruim, para não ficar magoado ou enraivecido, fingia não ser ele mesmo. Atuava um personagem qualquer. E assim, nenhum problema o atingia, estando logo no outro dia plenamente recuperado. Mas o que ele não notava era a desconfiança que as pessoas tinham dele toda vez que ele assim se comportava. E era chamado de falso, artificial, insensível. Foi ficando cada vez mais sozinho. Aquilo que para ele era estratégia de sobrevivência, um meio de se proteger dos sofrimentos humanos, se tornou uma armadilha social pra si. Era livre dos problemas. Mas isolado das verdadeiras convivências.

Sensações


Gather - Mary Jane Ansell

Ela me sorriu com os olhos. O contorno de seus lábios não precisa se amoldar em sorriso algum para que eu possa sentir a magia de um sorrir vindo dela. Já estou acostumado com seus modos. Já sei quando sorrir junto, quando entristecer junto. Já sei as suas mais intrínsecas sensações. E sorrio, choro, sinto. Junto dela. Que mesmo não sendo minha aos olhos dos outros, é minha aos meus próprios sentidos. Sentidos meus. Sensações dela.

Justo subconsciente


Quarto de hotel - Edward Hopper

Um dia, sonhou que traía seu marido. Acordou assustada, com tamanha repulsa do sonho, que chorou com raiva de si mesma. Imaginar praticar tamanha injustiça contra aquele que tanto dedicava amor a ela era um absurdo. O que o seu subconsciente tinha em mente para se manifestar daquele jeito? Não entendia. Até que no dia após o sonho, uma amiga a chamou para conversar. Muito cautelosamente, a amiga contou-lhe que havia visto seu marido traí-la. E, para piorar, ainda registrou o fato em fotos e vídeos. A sonhadora, diante daquela terrível notícia, compreendeu o recado dado pelo o seu subconsciente. Trair seu marido talvez não fosse uma má ideia. Injustiça contra um injusto traidor... Talvez, justo seja!

Seguro de vida



Weeping woman - Pablo Picasso

Das mãos pendiam notas e mais notas de dinheiro. Dos olhos pendiam lágrimas e lágrimas de tristeza. Uma cena estranha para qualquer observador que a desconhecesse. Mas se a conhecesse bem, saberia a imensa tristeza que a mulher sentia ao possuir nas mãos aquilo em que havia se transformado o seu marido. Viúva, acabara de receber o seguro de vida do falecido. No peito, a imensa vontade de trocar todo o dinheiro do mundo pela vida do seu amado. Que sinistro aquele o seu: ter o seu infinito amor transformado num finito valor. Ter o seu eterno amado convertido naquelas efêmeras notas.

Passarinhado

Flight of the mind - Christian Schloe

Era considerado o pior filho para sua mãe. Teve os piores rendimentos na escola. Não conseguiu nenhum emprego desses taxados como “de sucesso” pela sociedade. Nenhuma mulher, que se envolvia com ele, passou perto de pensar em tê-lo como marido. E nada de muito interessante lhe ocorria na vida. Isso tudo porque todos o achavam surdo. Mas o que ninguém sabia – e nem tentavam compreender – era que aquele homem nascera com uma cantoria constante de pássaros nos ouvidos. Desde o nascimento, chorou porque ouviu os passarinhados. Cresceu com os passarinhados. Vivia com os passarinhados. E quando ele tentava entender porque ele era tão destratado por todos, ele só conseguia pensar que os passarinhos que cantavam nos ouvidos das outras pessoas deviam ser péssimos cantores para lhes provocar tamanha falta de carinho pelo próximo. Só os seus passarinhos, por ele, tinham carinho.

Poesia a uma Eulália


Metamorphosis - Christian Schloe

De repente, na cabeça do velho poeta se fixou um pensamento: Eulália era o nome que ele colocaria numa filha... Se pudesse ter filhos. Mas como não podia, escreveria. Pela poesia, haveria de ter uma filha. Eulália. Não sabia por que o encantou tal nome, nem o significado dele sabia. Nem procurou saber. Mas a sensação que provoca o nome Eulália, quando escorre pela fala, é como se se observasse uma revoada de pombos brancos atravessar a alma. Uma sensação livre. Um nome que voa ao partir de sua boca. E ele colocaria, sim, tal liberdade no nome de uma filha. 
"Porque eu queria 
que uma filha 
fosse Eu. 
Lá. 
Lia."

Curtidas


Still Moment in Teal - Jeremy Mann

A neta nunca foi muito simpática com a avó, mas, alguns segundos atrás, a jovem pediu para tirar uma foto com ela. Toda sorridente, envolvida num abraço meigo. O primeiro abraço que recebera da neta, que se lembrava. Depois do flash, a jovem voltou ao rosto fechado, sentou-se e se curvou sobre o celular. A avó sabia que algum sério problema deveria haver com aquela geração. Tudo deveria ser registrado e posto na tal internet. Não importa se falso ou verdadeiro. O que importava eram as curtidas virtuais. E curtir a realidade? Nada.

Uma consulta


Queen of Diamonsds - Jack Vettriano

Talvez exista certo narcisismo em mim. Mas, convenhamos, Doutor, olhe para mim. Olhe, Doutor! Isso... Olhe... Tem como não desejar perder horas do dia contemplando minha imagem? Não tem, Doutor. Até Freud abandonaria a psicanálise para passar o resto da vida olhando para mim. Isso mesmo, Doutor, deixe esse riso fluir. Eu vi, sim, um riso aí no cantinho da sua boca... Deixe, deixe fluir! O que me traz aqui? Ah, Doutor, venho sugerir que os senhores psicanalistas estudem a mente de um bocado de homens dessa nossa sociedade. Acredito que eles devam ter sérios transtornos mentais. Pois, olhe para mim, Doutor. Isso mesmo, pode voltar a olhar... Por que será que, afinal, esses homens não reconhecem a maravilha que é me admirar? Por que, hein? Só pode ser transtorno mental, Doutor! E dos sérios!

Inauguração pública


A Piscina - Milton Dacosta

Inauguraram a piscina pública na cidade. A semana inteira foi um alvoroço de preparativos para esse dia. O comércio, que nunca havia vendido uma só peça de biquíni, teve que inventar até moda para atender a demanda. As praças, os únicos pontos de encontro da cidade, esvaziaram de tal modo, que nem os pombos por ali passaram. O povo, afoito, correu para a piscina. Mas a piscina não suportou tamanha atenção. A água quase toda transbordou. Teve menino que quase se afogou. Teve velhinho que das pernas das moças se aproveitou. Teve velhinha que se escandalizou. Teve fofoca que nunca mais se acabou. E o povo, antes afoito, logo abusou a pobre da piscina pública que dos seus bolsos tanto custou.

Flautista desencantado


Flautista - Candido Portinari

Quando era menino, sua vó só lhe botava para dormir contando a história do flautista encantado, que afastou a peste de ratos de sua comunidade, ao som de sua flauta mágica. Essa lembrança muito rondava seus pensamentos, nas noites em que não conseguia mais dormir, pois uns vizinhos "ratos" insistiam em fazer algazarra todas as madrugadas. Com isso em mente, aprendeu a tocar flauta e, certa noite, sentado na laje, começou a tocar. Aos poucos percebera o silêncio que causara. Lá em baixo, toda a vizinhança contemplava aquele belo som.  Mas o efeito da flauta logo acabou. Os "ratos" preferiam tagarelar ao som de músicas nada clássicas. O homem lamentou aquela sua realidade. E, cansado, conseguiu adormecer, sonhando com o mundo mágico que sua avó contava.

A partida


Retirantes - Carybé

Partiu. Pegou o pouco que sobrava de útil. Colocou no ombro. Partiu. Pensou que iria sozinho. Pensava que só nele existia aquela coragem de partir. Mas, meio caminho andado, teve aquela sensação súbita de que era preciso olhar para trás. Relutou em olhar. Não queria sentir saudade antecipada. Não queria correr o risco de olhar para trás e voltar, sem querer. Porque às vezes a gente não consegue impedir os impulsos de voltar a ser o que a gente sempre foi. Tinha coragem, sim. Mas não mentia sobre seus receios de mudanças. Mais meio caminho andado, parou e olhou para trás. O que viu o motivou a seguir. Lá atrás, com o pouco que sobrava de útil, a mulher e a filha o seguiam. Elas partiam. Apesar de nunca ter notado, elas também tinham a coragem de partir. E saber que partiam juntos era o que faltava para consolidar aquela sua determinação. Voltou a olhar para frente. Continuou partindo.

Merecido presente


World - Jennifer Balkan

Aos quinze anos, não quis festa de debutante. Pediu aos pais o mundo como presente. Mas os pais não tinham condição. Não querendo desagradar a pequena jovem, juntaram algumas economias e compraram um globo terrestre. Enrolado em um laço de papel, o globo foi aninhado nos braços finos da aniversariante. Ela refletiu sobre aquele presente e não se decepcionou com os pais. A realidade, por ela, era bem conhecida. Agradeceu. E aquela sua gratidão era a prova do merecimento que um dia a faria ganhar o mundo. De verdade.

Direitos sociais


Paesaggio Urbano - Mario Sironi

Passava por um ponto de ônibus, quando ouviu uma garota, com um grosso livro no colo, falar em voz alta a um amigo algo como “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia...”. Nem conseguiu ouvir o resto da frase, pois logo encheu os olhos d’água. Emocionou-se. Não sabia o que significava exatamente direito social, mas sabia que, como parte da sociedade, ela talvez merecesse todas aquelas coisas bonitas que a garota falava. Sentiu vontade de perguntar à menina onde ela podia ir reclamar aquelas coisas. Mas sentiu vergonha. Acabava de ser maltratada na fila do hospital público. Voltava para o seu casebre, onde seu filho a esperava com fome e sem nenhuma educação. E não sabia de onde tirar dinheiro para comprar comida para o filho, pois há tempos não sabia o que era um bom trabalho. Emocionada, continuou caminhando. Tentou esquecer aquelas palavras tão bonitas.

Gostos ocultos


Three Graces - David M. Bowers

Primeiro dia de aula. Perguntaram a ela o que gostava de fazer. Respondeu. Foi suspensa. Primeira noite de encontro. O moço perguntou a ela o que ela gostava de fazer. Respondeu. Foi abandonada. Primeira entrevista de emprego. O chefe perguntou a ela o que ela gostava de fazer. Respondeu. Foi dispensada. Completamente isolada, a mãe perguntou a ela o que ela tinha de errado. Respondeu que era sincera. A verdade não era aceita. Mas então, a mãe perguntou que verdade era aquela. Respondeu. Assombrou-se. Mas não podia deserdar a filha. Ao invés disso, ensinou-a a mentir. Depois disso, ela voltou aos encontros. Conseguiu um emprego. Viveu aparentemente normal... Exceto por aqueles seus gostos que persistiam. Ocultos. Perversos.

Dançarina


Cheryl Naked - Romero Britto 

Ela sambava, requebrava e sambava. E não sabia se estava realmente sambando. Parecia estar pulando. Mas fechava os olhos, soltando o gingado. Sentia a energia extravasar por todo o corpo. E ofegava, mas sorria para parecer bonita. Era aquele seu sorriso o mais sincero. Os músculos do rosto esticados, os músculos das pernas pulsando. E descia até o chão e desequilibrava. Porém aquela falta de equilíbrio era só um toque na coreografia, que logo ia completando com um giro e outro rebolado. Até cair na cama e abrir os olhos para o teto. O peito arfando de cansaço, mas de prazer. Dançava sem se preocupar com julgamento de nenhum público. O seu quarto era o local de seu espetáculo diário. E solitário.

Carta de herança


The artist's father on sick bed - Franz Marc

   Queridos filhos,

Estou inteiramente velho. Corpo e mente. As articulações estão de tal forma envelhecidas que quaisquer estralos são prenúncios da morte. Mas ainda me sobrou forças e sanidade para escrever essa breve carta a vocês. Serei direto: quando eu morrer, por favor, não decretem guerra pelos os meus patrimônios. Vocês são irmãos e mesmo com suas diferenças, com o tratamento específico que dei a cada um (porque nenhum pai trata seus filhos de modo igual), não há motivo para serem rivais em razão de bens materiais. Serão mal vistos. Mas, mais do que a aparência, o que me preocupa é o caráter de cada um de vocês. Quero morrer deixando essa mensagem em prol de um caráter íntegro e imaterial. Pois isso é o que importa. A morte vem e o que fica não é o patrimônio que obtive - este logo se desfaz - mas o caráter que tive. E eu bem que poderia estar fazendo um testamento ao invés dessa carta... Mas deixarei a tarefa materialista para o destino. Reservei-me da tarefa mais nobre. E é com essa mais pura nobreza que, então, me despeço, 
Seu velho.

Olhos enxutos


Q Train - Nigel Van Wieck

Ela sentou-se no banco do metrô vazio e esperou as lágrimas descerem. Mas elas não desceram. E ficou ainda mais triste com isso. Na sua infância distante, o choro costumava ser sua redenção. O lugar-comum dos seus alívios. Porém, parece que, além da sua inocência, o tempo levou também sua capacidade de chorar. Mesmo com tantas decepções acumuladas, mesmo com todo aquele sentimento de tempo perdido... Não pôde contar com suas próprias lágrimas. Era o cúmulo da solidão. O atestado da sua imensa fragilidade. Ali ficou, no banco daquele metrô, uma recém-adulta só e frágil. Voltas e mais voltas, de olhos vazios.

Carta ao carteiro


Still Life with ink bottle book and letter - William Michael Harnett

   Sr. Responsável pelos Correios dessa cidade,

Eu não o conheço, por isso não me dirijo ao senhor pelo nome. Mas suspeito que talvez me conheça. Sou eu o homem que manda todo santo dia uma carta endereçada a uma senhora que vive na capital do país. Não há um dia sequer que eu não tenha escrito uma carta a ela. Mas minhas respostas nunca – digo, nunca! – chegaram até mim. Não entendo a razão de não haver cartas de resposta. Tenho profunda certeza de que essa senhora me ama o suficiente para escrever – quiçá, todo santo dia! – cartas para mim. Então, cheguei à conclusão de que o senhor ou os seus subordinados carteiros estejam conspirando contra esse velho homem apaixonado. Talvez tenham inveja de ainda existir um amor verdadeiro via correios. Talvez sejam homens muito mal amados ou sejam desses que vivem se correspondendo por esses meios virtuais tão fugazes... Mas não me importa quais são seus problemas, senhores! Apenas exijo que prestem seu serviço direito! Entreguem-me minhas correspondências!  Porque o meu  amor é recíproco e isso é inquestionável!

Atenciosamente, Platão.

Sua perfeita escolha


Suicide - Amber Christian Osterhout

Uma bela casa, carro, emprego. Uma família unida, pais fiéis e dedicados ao extremo. Formou-se na melhor faculdade, no curso mais promissor. Ao seu lado, a mais bela das mulheres. Tinha saúde física, amigos, ótima condição financeira. O mundo parecia estar aos seus pés. Sua vida era perfeita aos olhos de todos. Vivia tudo aquilo que sonharam para ele, mas nada que ele havia escolhido. Quando fez sua primeira escolha, o estômago embrulhou, as lágrimas escorreram, não conseguia respirar e o coração acelerou... Até parar. O sorriso que restou estampado no seu rosto foi o único e verdadeiro pela primeira e última vez. Tornou-se o homem mais feliz do mundo naquele breve momento de adeus.

Em parceria com Raphael Craveiro.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.