Archive for 2015

Café e suspiros


Coffee cup heart reflection - Nina Robinson

Primeiro, me apaixonei pelo aroma do café que ela fazia todas as manhãs. Era um cheiro que adentrava meu apartamento com a mesma intensidade que sua imagem adentrava minha alma todas as vezes que eu a via. Era linda. Morena da cor de café. Um jeito fluido e decidido de ser. Um dia, não resisti. Bati na porta do apartamento vizinho, onde ela morava. Fui com toda cara de pau que tinha, me ofereci para tomar o café. Ela não hesitou - que mulher! - e deixou-me entrar. Enquanto ela servia uma farta xícara de café, eu ofereci suspiros - os doces, claro, para iniciar. Experimentei o café... Amargo! Tão amargo quanto a história de vida que aquela negra começou a me contar. Enquanto eu só tinha a contar uma doce história de vida. E você pensa que eu achei ruim? Não achei, só me encantei. Cada vez que o amargor se tornava insuportável, eu jogava para dentro da boca um suspiro e o açúcar era como tomar um fôlego. E senti que os suspiros eram o mesmo para ela. Acredito que era bem isso que ela precisava. E eu também. Um equilíbrio que jamais imaginaríamos viver. Entre o amargo e o doce, um café e um suspiro, uma paixão.


E se?

 

Sorrowing Old Man (At Eternity's gate) - Vincent van Gogh

Se você pudesse escolher qual batalha travar, qual escolheria? Se pudesse escolher quanto tempo atrás retornar, quanto tempo voltaria? E se pudesse escolher alguém para ressuscitar, quem seria? Quantos passos para trás daria? Quais palavras calaria? Quantas horas pausaria? Quais decisões mudaria? Quais dessas perguntas responderia? Quais? Quantas? Quem? Por quê?... E se não houvesse interrogações, seria menos complexo viver? Naquele instante, o velho resolveu responder essa última pergunta que surgia em sua mente. Apenas fechou os olhos e imaginou seus primeiros dias de vida, em que a arte de interrogar ainda não era conhecida. Ah!... Por aquele breve instante, suspirou aliviado ao sentir o quão fácil, natural e simples era viver! Porém esse instante findou-se logo em seguida: "Mas será se era assim mesmo a vida? Ou só na minha imaginação é que assim seria?".

De coração


Crepuscular Old Man (1917-1918) - Salvador Dali

Disseram-lhe que tinha uma bomba relógio dentro do peito. Recordou que desde menino acreditava que guardava no peito o poder de ser um super homem. Descobriu na adolescência que esse poder também era capaz de o tornar frágil. Usou para o mal e para o bem todo potencial daquilo que tinha dentro do peito. Desde as mais criativas histórias de criança às paixões e intrigas. Dos planos de filantropia aos planos de vingança. Em tudo, agia muito com o coração. Mas hoje ouviu que aquele mesmo órgão poderoso agora tinha uma contagem a correr regressivamente. E quando findasse essa contagem, o levaria junto para o seu fim. O coração que o fez viver de forma tão intensa desde menino, era o mesmo que o levava a morrer. Vivia e morreria em razão daquilo que guardava dentro do peito.

Conto de sedução


Lovers - Jarek Puczel

Cavalheirismo é sedutor. Pelo menos era o que ela passou a acreditar que fosse. Pois não havia um dia em que ela não o desejasse. Cada encontro, ele abria uma porta aqui, dava espaço para ela passar, oferecia um sorriso, um copo de água, um boa tarde, uma ajuda para fazer algo... E por aí seguia todos aqueles atos cavalheiresco de um homem que passava longe de ser fisicamente encantador, mas que, não sabia bem porquê, a deixava sem ar. Tão educado. Tão simpático. Tão natural. Ele não parecia um príncipe - faltavam aqueles olhos claros, traços simétricos, músculos dos astros de Hollywood. Mas ele agia como um príncipe. E mais importante do que isso: a fazia se sentir uma princesa. Por isso, ela o desejava. E depois de uma série de frustrados romances com aparentes príncipes, ela aprendeu que mais importante do que parecer, era agir e fazer sentir. Então, ela estava determinada: deixou-se seduzir. Deixou acontecer.

Singulares


Awaiting Return - Kenton Nelson

Em que momento foi que nos deixamos para trás? Desde quando a indiferença tomou conta de nós? Não guardo mais certeza sobre o amor que um dia sentimos um pelo outro. E também não sinto mais aquele rancor que nos motivou chegar até aqui. Sinto que já não há nem uma coisa nem outra. Não há mais dívidas, tampouco dúvidas, que sustentem nosso estar juntos. O que fazer, então? Onde vamos parar? Ah, agora vejo bem... Não vamos mais a lugar algum. Vamos, não mais. Eu vou. Tu vais. E seguimos conjugando os verbos na primeira pessoa do singular, já que o plural não nos agrada, nem desagrada mais. O plural não se encaixa em nós. Nós? Já não há. Eu sigo. Tu segues. No singular.

A lição do curió


Red Bird - Harold Braul

Coração batia ansioso. Sabia que tinha feito a coisa certa. Mas sentia que iria ser castigado. É que foi mexer com o que não era da sua conta. Mas aquilo parecia está tão errado! Tinha que ter agido. Agiu, mas agora estava a espera das consequências.
O avô voltou para a casa. Olhou para o neto claramente apreensivo. Sabia que ele tinha aprontado alguma. E confirmou sua intuição ao encontrar aberta a gaiola do seu curió. Respirou fundo e foi ao encontro do garoto. O menino, já com olhos cheios d'água, viu a mão aberta do avô se aproximar dele e fechou os olhos com a intensidade da violência que esperava. Mas acabou sentindo um afagar calmo no alto da sua cabeça. Desconfiado, abriu os olhos e encarou o rosto tranquilo do avô. O menino aprendeu naquele dia que nem sempre podia deixar de agir corretamente por medo de encarar a força dos que agem errado. E que agir corretamente, por iniciativa própria, pode acabar corrigindo erros alheios.


Papo depois de um vinho



Familiar Notes - Milt Kobayashi

Hoje eu te amo menos. Não significa que eu não te queira mais. Não significa que eu esteja amando mais outro alguém. Não significa que eu ainda não te ame. Te amo. Só que menos que ontem. Talvez mais ou talvez menos que amanhã. E deixo logo claro isso: sou assim mesmo, volúvel. Mas calma, não se preocupe, que nunca chego a volumes negativos daquilo sinto. Ou seja, meu amor por você não vai acabar. Apenas irá variar, como um rio intermitente. Ora pode ser corrente forte de água... Ora pode ser poças de água entre as pedras. Mas nunca esse rio muda de lugar. Faça seca ou ocorra dilúvios, é sobre esse leito que esse rio há de correr. E és tu essa terra estável. Estabilidade essa que faz eu me apaixonar por ti... Pensando bem, te amo mais agora! Vem aqui, vamos acabar com esse papo...

Injustificados


Operários - Tarsila do Amaral

Ela era mais uma na multidão e observava. Não eram mais jovens. Aceitando isso, uns vão desistindo. Retornam as suas origens ou adotam uma residência, um trabalho, contas a pagar, filhos para criar. Abandonam seus passados de juventude selvagem. Juventude fugitiva. Abandono doloroso, mas necessário. Já não são mais jovens, afinal. E é a juventude que justifica a loucura que é fugir da reta, buscar fazer aquilo que se realmente ama ou buscar não fazer nada, simplesmente. A juventude, esse estado temporal que permite a todos se permitir. Mas que finda. E sem essa justificativa, ou rumam suas vidas para a reta ou passam a viver como incompreendidos, inconsequentes, incompetentes, irresponsáveis – coisas que já eram quando jovens, só que agora sem a tal justificativa: a juventude. E ela era uma dentre esses tantos injustificados.

Derrota solitária


Androniki - Giorgos Rorris

Esse é aquele momento em que a solidão vem e ataca. Pensou. Repousou as costas doloridas na poltrona. Buscou o sono, sua arma para tentar rebater o ataque, mas se lembrou que, há alguns meses, a insônia também tinha a atingido. Então, insone, teve que se render novamente. Sentir a dor de estar sozinha. Mais um dia a terminar assim. Sabia que esse era o preço que tinha que pagar por ter vivido daquela forma tão egoísta. As pessoas que pareciam na sua juventude tão substituíveis, tão descartáveis, agora pareciam tão fundamentais no auge dos seus cinquenta. Porém, ninguém permaneceu ao seu lado. E ela merecia aquela solidão. Por isso, não lutava mais. Deitaria e deixaria escorrer as lágrimas no rosto - sangues de mais uma derrota - até adormecer por umas poucas horas. Até acordar e viver mais um dia.

Retrato


Erasing herself 2 - Roberta Coni

"Querida, por que se vestir assim? Essas tantas maquiagens não te deixam tão bonita", a avó observava a neta se arrumar. Como resposta a esse palpite, a menina gritou "olha quem vem falar de beleza para mim, feia como a senhora é! Me deixa ser feliz, sua..." E completou o insulto listando os defeitos físicos da velha avó, antes de sair para festa. No outro dia, acordando cheia de ressaca, a neta encontra no espelho do quarto um retrato em preto e branco de uma moça que era a sua cara. Assustada com tamanha semelhança, correu até a avó pedindo explicações. "Essa sou eu, na sua idade". A moça ficou sem palavras e a avó continuou: "é só para te dizer que tome cuidado com suas palavras e seus conceitos. Se você tiver a sorte de viver o tanto que eu vivi, é muito possível que acabe tão feia como eu sou. E espero que você tenha essa sorte, não para que você pague pelo o que me disse, mas para que você aprenda que, no final, beleza pouco importa. Não construa sua felicidade com base na sua beleza, querida. Senão, quando chegar à velhice, será uma completa infeliz".

Romance



Pierre Auguste Renoir, Woman Reading

Na espera pelo ônibus de todo dia, se apaixonou pela leitora sorridente. Mas vivia amargurado pois não conseguia tirar os olhos da moça das páginas que ela levava sempre consigo. Aquele sorriso e sua leveza diante da narrativa o encantavam de tal forma que decidiu um dia chamar sua atenção. Depois de muito hesitar, iniciou uma conversa com ela. Recebeu como resposta a fisionomia mais raivosa que já vira na vida. Assustado com tamanho ódio expressado, ele percebeu que a beleza da moça só poderia ser encontrada durante suas leituras. Infelizmente não havia espaço para ele na vida dela. E ela sem um livro não seria assim tão encantadora. Decidiu não mais intervir. Porém, dedicou seu tempo a se imaginar personagem dos livros dela. Aí então, a namorou. E viveu um amor digno de um romance.

Fórmula vital

 

Camilla - Anna e Elena Balbusso

Ela era como uma flor, necessitava ser regada. E a água que a melhor hidratava era a atenção dele. Sim, ela precisava da atenção diária dele para parecer viva. Caso ele não desse atenção, ela murchava. Perdia a cor. Parecia morta. E isso ocorria por mais que ela soubesse que ele a amava, por mais que houvesse amor como nutrientes no solo em que a flor estava fixada... É que não basta somente os nutrientes do solo para manter uma flor vivaz. É preciso água - esse precioso meio que distribui os nutrientes. Assim, para aquela flor específica, não era o amor por si só que a sustentava. Era o amor atencioso. Eis a fórmula vital daquela flor-mulher.

Cidade prostituta


Alta - Mário Fresco

Aquela cidade era como uma prostituta velha. Cujas rugas são o que há de mais atraente nela. Cujos lábios eram pintados da cor da moda, para se manter atualizada.  E seus clientes mais comuns eram jovens a procura da experiência exata. Uma velha prostituta, eternizada pelos gozos mais sinceros. Que trabalha manhã, tarde e noite. Pois combustível para o prazer nunca lhe faltou. Aquela cidade, mais conhecida pela sua universidade, recebia de braços (e pernas!) abertos uma leva de universitários. Todos com sede de conhecimento e de prazer. Recebia e se despedia deles, quase todos os dias! E era prostituída, abusada, acariciada, elogiada, xingada, engrandecida... Desde memoráveis séculos passados. Sempre grata por cada um que por sua cama passasse.

Sussurro antes do embarque


Trust (serie Lovers) - Lynn Noelle Rushton

Monta acampamento em mim. Sou terra fértil. Não tenho cercas, nem muros, nem limites. Mas sou lugar seguro. Não há como forasteiros adentrar esse território que sou. Porque sou lugar feito para ti. E só a ti te serve. Aposenta tuas mochilas e teus pares de tênis de viajante. Guarda as experiências de fugas pelo mundo no baú da memória. E vem erguer moradia aqui. Uma cabana simples. Uma fortaleza grandiosa. Ou qualquer outra estrutura que desejar. Apenas vem, pois em mim há um pouco de qualquer lugar que tu já tenha ido ou pensa em ir. Só que com uma diferença: aqui não há motivos para fugir, porque aqui não precisa ter medo de ser o que você é. Nem de mudar isso que você é. Essa terra suporta tuas nevascas, vendavais e primaveras. Todas as tuas transformações. Pois nasci para te sustentar. Para te servir de base. Eis minha felicidade: servir a tua felicidade. Então... Assenta nessa terra? Não embarca... Casa comigo?

Anjo suburbano



Kierra (detalhe) - Michael Shapcott

A menina, com roupas simples e com um pássaro preso entre os dedos, ficava encostada ali nas esquinas da cidade movimentada, tentando chamar atenção. E chamava. Os olhos claros e sérios, o pássaro estranho e a voz angelical irrompiam o cenário urbano. Ao seu redor pessoas aleatórias se amontoavam para admirar o talento daquela criança. Sem instrumento algum, a menina passava os dias a cantar, a impressionar com sua voz de anjo. Sua imagem circulava o mundo virtual. Sua voz se propagava de celular em celular que a gravava. Mas ninguém perguntava seu nome. Ninguém se importava com sua história. Os que, por uma centelha de segundo, se importavam, atiravam algumas moedas na bolsinha que aos seus pés permanecia. E no final do dia, quando o movimento urbano reduzia, as moedas eram reunidas pelo homem que se dizia seu pai – cujo trabalho era permanecer distante a observar a filha – e esta, com a voz de anjo engolida, seguia os passos dele. De volta ao subúrbio. Onde sua voz pouco importava. Onde tinha nome próprio. Onde sua história se fazia.

Vingou-se


Rostro 2 - Rossina Bossio

Depois que a irmã mais velha roubou o seu namorado platônico, ela contou para os pais que a irmã havia perdido a virgindade muito cedo. Os pais castigaram a filha mais velha, mandando ela para um internato. Assim, se vingou. Depois que o marido pediu divórcio, ela encheu a cabeça do filho pequeno de coisas ruins sobre o pai. O filho nunca teve um bom relacionamento com o pai. Assim, se vingou. Depois que uma amiga a reprovou por ela se comportar de forma tão mesquinha, ela acabou com a amizade e espalhou a todas as outras amigas que aquela era falsa, que sempre falava mal das outras. Assim, se vingou. Essas e outras memórias rondavam a mente daquela mulher, enquanto ela estava na quimioterapia. Percebeu que todos os momentos felizes da sua vida foram sempre ligados à vingança. Mas que nunca havia sentido a felicidade de fato. Mas ao invés de voltar atrás e pedir perdão por suas vinganças, a mulher, com tanta raiva de si e sem muitas chances de vencer aquela doença que a alcançou tão cedo, desistiu de se cuidar e passou a esperar sua morte chegar. Quando morresse, se vingaria de si mesma. E aquele seria seu último momento feliz.

Entre tiros


Guns - Andy Warhol

Som de tiro. Não só um. Muitos tiros. Para seus ouvidos, não era barulho. Era som, como dos passarinhos na primavera. Mas diferentes dos passarinhos – que só apareciam na primavera – os tiros não tinham estação. Eram sempre presentes. E nunca tivera medo disso. Não até ouvir aqueles tiros. Não eram tiros das armas do pai. Sabia disso. E soube da pior forma. Sangue. No chão da sua casa, havia muito sangue. Descobriu o corpo do pai morto na sala. De súbito, acordou. Aquela lembrança novamente durante o sono. O homem levantou, lavou o rosto para afastar aquela memória. Lembrou as palavras do homem que matou seu pai: “menino, não se preocupe, agora vamos te levar para um país melhor e terá uma educação melhor. Não precisará viver entre tiros”. Diante do espelho, ele encarou seu próprio riso. Muito enganado. Apesar do seu passado renegado, com seus pais talibãs mortos, após ser supostamente acolhido por outra nação, educado e formado, agora era policial. E escolhera aquela profissão só para continuar vivendo entre tiros. Porque ele foi criado assim. Porque aqueles foram os valores ensinados por seus pais. E sairia para mais um dia de trabalho. Para atirar. Porque aquele era o som da sua vida.

Tanta saudade


Happiness - Clare Elsaesser

A saudade não a apertava mais. De tão grande que era, a saudade daquela moça já escapava para apertar seu arredor. As pessoas não se sentiam mais tão bem ao lado dela, pois a saudade que ela transmitia causava a sensação de aperto nos outros. E por onde ela passava, a saudade ia envolvendo as pessoas, os lugares, os ares... Até o dia que sua saudade ficou tão grande que apertou o mundo. E nesse aperto mundial, ela sentiu que havia tocado nele. Ele, razão daquela saudade, que estava a uma distância tão grande. Distantes por um tempo tão longo. E, então, pela primeira vez, meio a tanto tempo e tanta distância, a moça agradeceu por ter aquela saudade. Saudades dele. Saudades que a mantinha perto dele.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.