Archive for julho 2011

Aromatizados


Urban alley II


Meio dia. De tanto as casinhas serem pregadas umas nas outras, aquele horário do dia era um maná dos aromas. Quem parasse para analisar os cheiros e fedores ficaria impressionado. Aquela era a hora das crianças voltarem das creches e colégios – hora de banhá-las para o fedor do suor infantil ir se dissipando com o cheiro do sabão de coco. Era hora da refeição mais importante do dia – o almoço de um vizinho era sempre peixe, de outro era sempre carne assada e daquela senhora da esquina, sempre feijoada apimentada. E ainda, era hora do trânsito congestionar ali próximo e o vento soprava sempre para o corredor das casinhas pregadas aquele cheiro de gasolina, fedor de carbono queimado. Os moradores ociosos acumulavam o cheiro da preguiça; os moradores trabalhadores eram impregnados pelo cheiro do cansaço. Os aromas eram a marca registrada do cotidiano daquele corredor de casinhas.

Domingo de voo


Abandonment - Ian Castruita


Ele morava na casa dos pais, sozinho. Há tempos não tinha mais a mãe para limpar a casa, nem o pai para cozinhar o feijão carioca. Teve que se adaptar à vida daquela casa solitária. Por isso, as responsabilidades agora eram suas: aquele domingo de vento era dia de arrumação. E, sem motivo aparente, foi pela despensa que começou o trabalho doméstico. Já sentia o suor na testa escorrer, quando algo caiu por cima da sua cabeça. Olhou para o chão e viu uma pipa amarela, empoeirada e com teias de aranha. Lembrou-se de quando era moleque... De como passava horas observando os meninos lá fora empinando pipas... De como foi que furtou aquela pipa, mesmo o pai não o deixando brincar com ela.
Com a pipa nas mãos, não ouviu a voz da mãe o repreendendo, nem os gritos do pai mandando-o estudar. Um sorriso faceiro brilhou no seu rosto de trinta e sete anos. Foi para fora da casa, estendeu a corda da pipa e saiu correndo. Aproveitou o domingo de vento para resgatar sua infância perdida. Por um momento, não sentiu saudades dos pais – se eles estivessem ali, iriam mandá-lo parar. O homem deixou-se guiar pelo moleque que fora banido para o fundo do seu peito. Alçou voo naquela pipa amarela,  durante a tarde inteira.

Silenciados



Biblioteca - Miháy Bodó

Alguns metros de livros os separavam. O olhar aguçado dele não poupava ousadias; identificava-se com os olhos pequenos e leitores daquela moça. Esta lastimava-se e, a cada parágrafo degustado do clássico de Dostoiévski em mãos, lançava um olhar sorrateiro rumo a mesa do lado. Já o rapaz segurava-se à cadeira pouco confortável do prédio público para não deixar seu corpo ir de encontro àquela bela leitora, influenciado, talvez, por um impulso a lá Raskólnikov – aquele perturbado personagem russo que o ocupava no momento.
Se ao menos soubessem que liam o mesmo romance, quem sabe se arriscariam. Mas o silêncio imposto por aquelas vastas estantes de livros os impedia... Permaneceram leitores, de frases e olhares. Frio hábito das bibliotecas do mundo que insistem em silenciar romances.

Volta perdida


Above and Below III - Mary Jane Ansell


Acordou ansiosa e, com seu olhar minucioso, descobriu o que temia: ele não estava mais ali. Fechou os olhos e deixou-se rolar por aqueles lençóis de seda vermelha. A angústia tomava conta do seu peito. As lágrimas, sem nenhuma educação, romperam as frestas de seus olhos e banharam seu rosto macio. Sentiu a saudade invadir sua mente. E sentiu que não demoraria muito até surgir a torrente de perguntas sem respostas: ‘por que’, ‘o que eu fiz’, ‘eu mereço’? Deixou o corpo se curvar, como se estivesse numa guerra sem esperanças e com aquilo buscasse proteção. Os lábios secos abriram-se num gemido tristonho.
A perda é lastimável para qualquer ser humano. Mas pior do que isso é perder depois de pensar que ganhou... Depois de uma noite de amor, depois de sentir que poderia ter volta, depois de pensar que tudo havia se consertado... Perdeu pela segunda vez. Seu homem a deixou de novo, depois de tê-la nos braços a noite inteira. Idas e vindas... Porém, dessa vez não haveria volta.

Escondidos


Lane in Cheshire 1883 - John Aktinson Grimshaw

Atravessou o bosque escuro em segurança, tentando não deixar vestígios. Alcançou o casebre com o peito arfante de excitação. Não sabia se era a adrenalina do percurso ou o prazer da chegada que o deixava daquele jeito. Bateu quatro vezes pausadamente na janela e esperou o barulho da tranca da porta soar. Adentrou no ambiente pequeno e quente, soltou todo o ar do pulmão e olhou para a anfitriã. Bela, olhos negros compassivos, finos lábios vívidos, longos cabelos cor de areia. Mas o que o levava ali não era aquelas características... O que eles faziam – escondido, proibido e à luz de velas – era o que o movia.
Ele tirou o livro de capa dura marrom de dentro do casaco e pôs em cima da mesa velha. “Hoje você vai aprender um pouco de poesia...”, disse ele com um sorriso largo no rosto, deixando a compaixão despertar no seu íntimo. Ela assentiu, sentindo a curiosidade se expandir. Uma madrugada de leitura e aprendizado esperavam aqueles generosos jovens: um garoto rico e uma garota pobre, o primeiro sendo professor e a última, uma dedicada aluna. Separados por um bosque e pelo acesso ao conhecimento... Ou melhor, pelas desigualdades da sociedade em que viviam.

Vida movimentada


Street Scene - George Grosz

A sua vida social era agitada. Estava sempre no centro de todos, tentando chamar atenção. Cumprimentava cordialmente quem na sua frente passasse. Por vezes havia quem lhe retribuísse o comportamento, por outras, o ignoravam. Natural, pensava ele. Para uma pessoa que tem uma vida movimentada, manhã, tarde e noite na rua, aquilo poderia ser natural, uma vez que ele teria que lidar com personalidades diversas.

Mas ele não gostava dessa vida aturdida. Afinal de contas, o que ele era? Um mendigo. Não voltava para casa, porque literalmente vivia na rua.  Cumprimentava todos que passavam com a esperança de sua súplica arrancar daqueles pedestres uma forma de mudar sua situação. Recebia atenção de alguns: umas moedas, um pedaço de pão que restou do lanche de alguém ou algumas bençãos de religiosos. Mas o natural, e ele naturalmente aceitava isso, era ser ignorado. E tinha alguma coisa que ele pudesse fazer? Não, pensava. Sentado naquela calçada larga, sujo e maltrapilho, estendia a mão àquela sociedade.

Giraldo e Maria Sol


Girassóis - Vincent Van Gogh

Apaixonaram-se nos poucos minutos que passaram na recepção da floricultura à espera da entrevista de emprego. Não precisaram de palavras naquele instante para saber que estavam amando um ao outro. Ambos foram contratados, porém, ele foi para o plantio das flores e ela ficou com os cuidados dessas até a venda. Trabalhavam distantes, ele na fazenda e ela na cidade; mas nem por isso se esqueceram do amor entre eles. Dessa vez, foi preciso usar as palavras como meio de união. A cada nova chegada de flores da fazenda para a cidade, lá estava um simples bilhete dele. A cada volta da cidade para a fazenda, lá estava um bilhete dela. Ele assinava com seu apelido de quando era menino: “Gira”; ela assinava com seu segundo nome de nascença: “Sol”. Giraldo e Maria Sol eram amantes entre as flores.

Blindagem social



Waiting for Paris I - Myles Sullivan

Saiu do departamento onde trabalhava escoltado pelos seguranças. Entrou no carro blindado e esperou que o motorista fosse rápido pelo tráfego. Alcançou as imediações da sua prisão residencial. O prédio rasgava o céu cinza das seis horas da tarde. Subiu em silêncio pelo elevador principal. Passou pelos empregados sem cumprimentar. Trancafiou-se no seu duplex, condenado a pagar a pena da sua insociabilidade. Observou, passivo, as pessoas livres lá fora. O que esperar de mais um julgamento? A mesma resposta. Sua alma era presa a si mesma e tudo que conquistava na vida era para si. Compartilhava, no entanto, toda sua riqueza material com aquele vazio seleto que deixava ultrapassar as fechaduras e trancas de segurança da sua vida. Não fazia parte da sociedade... E também não queria.

Abandonado


Master Bedroom - Andrew Wyeth


Era como gente. Ficou sozinho na casa dos seus donos não sabia por quanto tempo, mas sentia a mesma falta que sentia desde a saída deles. A saudade não aumentava, até porque o resto do seu corpo não entenderia aquele sentimento, sendo inútil ultrapassar os limites de sua cabeça. O coração do cachorro não servia para sentir, como os humanos acreditam que os seus faziam; batia, somente. Era na sua cabeça que guardava as recordações. Não dava para esquecer, afinal; todo canto da casa vazia tinha cheiros e vestígios dos seus donos.
O cachorro vivia só, desde que os donos morreram. Ninguém se preocupou em cuidar dele. Mas ele se sentia cuidado pela casa abandonada. Não sairia daquela casa tão cedo, pois ainda tinha muito que viver. Com saudades, mas viveria. Viveria como gente.

Carta de despedida



Dutes Motes Dancing in the Sunbeams - Vilhelm Hammershoi

                “Querido pai,
É provável que esteja com lágrimas aos olhos e que agora esteja vendo de modo embaçado o meu corpo sem vida na sua sala de estar. Escolhi morrer aqui, porque já não aguentava mais a casa do meu marido – aquele homem soberbo a quem o senhor deu minha mão em casamento. Desculpe-me, pai, mas não fui forte como minha mãe. Ela, sim, era guerreira e suportou uma vida inteira do lado de um homem que a traía. Você! E não pense que eu não sabia disso; eu sempre soube. Passei minha vida odiando suas traições. Passei minha vida esperando por um casamento íntegro, fiel. Mas veja como o destino é ousado: casei-me com um homem que também adultera a união sagrada. Fui mais uma mulher traída; sofri igual minha mãe; senti na pele os mesmos ferimentos da infidelidade.
Resolvi morrer, o quanto antes. Não era essa vida que pensei viver. Então, desculpe-me, pai, pois sei que sou a última pessoa que sobrou na sua vida e sei do imenso amor que sente por mim. Agora vejo que serei o motivo para fazer o senhor sentir na pele o peso de seu pecado. Viverás, meu pai, até o fim da sua vida lamentando seus erros. Deixo meu perdão em nome de minha mãe; espero em oração suas lágrimas e lamentos por sua conduta. Não se esqueça, estarei esperando...”

O homem, caído de joelhos, chorando pesarosamente, com o corpo da filha morta nos braços, entregou-se ao martírio dos infiéis.

A protetora


Mother and child on a couch - James Abbott McNeill Whistler


Correu para o quarto do menino o mais rápido que pôde. Trancou a porta e abraçou-o forte, pois sabia que ele corria perigo mais uma vez. A respiração acelerada não poupou sua pele de sentir as lágrimas quentes da criança. Sofria vendo-o daquele jeito. As pancadas na porta anunciavam que o pai do menino já chegara ali, depois de subir, trôpego, a escada da casa. A criança era vítima das irresponsabilidades do pai alcoólatra. Ela, tia e irmã do homem que berrava imundices do lado de fora do quarto, se sentia na obrigação de proteger aquele nobre pequeno ser. Sem mãe, o menino tímido apoiava-se nos carinhos da tia para ter esperanças de uma vida melhor, visto que seu pai desencantava qualquer sonho infantil seu.
Os minutos transcorreram frágeis; a mulher percebeu que conseguira, mais uma noite, afastar o menino da violência do pai. O homem, seu irmão, desistira. O menino, seu sobrinho, adormecera. Amanhã seria um novo dia... Ela rezava, agora, para que esse fosse melhor.

Campestre


Spring Dream - Lori McNee

Abriu a janela para começar o dia. Os galhos da cerejeira invadiram a casa. Os pássaros assustaram-se, alçaram voo. Ela sorriu. Recostou-se no parapeito da janela e ficou por ali meditativa. Viu sua infância ali, no campo, florir. Sua juventude ali, no campo, brotar. Vivia simples e sem largos desejos. Diferente de seus irmãos. Foram deixando a casa, pouco a pouco, criando expectativas de uma vida farta em algum canto cinza e barulhento do mundo a fora. Ela foi a única que permaneceu, não que não fosse mulher de garra – como muitos diziam -, mas porque era feliz. Não era, afinal, a felicidade que todos buscavam? Fugiam do campo, corriam nas cidades, contavam salários e buscavam por mais e mais: tudo não tinha o objetivo simples da felicidade? Sim. Ela, no entanto, não precisava de tanto para ser feliz. Era feliz ali, no campo. Esperou seus pais; esteve do lado deles quando morreram, sentindo falta dos filhos que foram embora dali. Mas esteve presente...
Os pássaros voltaram a seus postos nos galhos da cerejeira. Sorriu de novo. Voltou para o campo, viver.

Ritual


Automat - Edward Hopper

Vez por outra, ela se sentava naquela mesma mesa e pedia um cappuccino para acompanhar o sabor da sua solidão. Vivia atordoada, sempre envolta por afazeres diversos, no entanto, nem por isso aquele sentimento a deixava. E, por acaso, desde cedo aprendera a cultivá-lo como algo normal. Era simplesmente mais uma das suas intrínsecas características: a solidão.
Não era o beijo do marido nem o choro insistente da sua filha de poucos anos que a tiravam daquele estado. Ela tinha que sair só, porque, caso contrário, estaria sacrificando algo de si que não podia ser sacrificado. Era seu ritual de auto-afirmação, afinal. Ela era aquele ser ali, sentado e solitário, mas nem por isso menos feliz que qualquer pessoa vazia que por ali passasse.
Parou de refletir, então. Bebeu um gole da bebida e contemplou sua solidão.

Amado réu


Lumia Czchwska - Amedeo Modigliani

A senhora vestida de preto levantou da cadeira e se deixou a mostra diante de todos. Não gostava daquele tipo de situação, mas era preciso. Iria defender sua vida. Iria, em frente ao tribunal, expor seus sentimentos, argumentos e anseios para viver conforme toda mãe queria viver. Seu filho estava sendo tirado dela. Não sabia ela que, realmente, o filho era culpado. Mas o que importava aquilo? Era o seu filho, amor pela qual viveu amando. Não sobreviveria sem ter notícias dele. Não era aquilo que imaginou para o seu amor.
“Quero dizer, antes de tudo, que sou mãe. O meu filho é razão e essência de toda uma existência, sabendo ele ou não, errado ou não... Ele é meu filho.”. Colocou as cartas na mesa. Disse tudo e até um pouco mais. Faria tudo, mas não queria ver seu filho longe, sozinho e sem seu amor.
Mas, apesar de todo o seu esmero, seu filho foi condenado. Assistiu, estática, sentada, sem poder fazer nada, seu filho sendo levado dela. Não o veria tão cedo. Doeu no fundo do peito ver aquilo. Mas o olhar do seu filho não era triste. Era alegre, pois sabia que a mãe ainda o amava. Fora condenado e amado. Viveria preso, mas sabendo que alguém o amava de verdade.

Em combustão


Sem título - Françoise Nielly


“O que é? O que estão olhando?”. Ela sabia a resposta. Todos olhavam a raiva, expressa, clara e pulsante. A raiva feminina estampada no rosto delicado dela. Sua respiração parecia alimentada por um poço fundo de petróleo e a faísca de fogo que o seu coração forneceu foi uma chama alta e farta demais. Estava em combustão intensa. Odiava ter que admitir, mas já perdera o controle sobre a situação. E não podia fazer nada a não ser tolerar os olhares implacáveis daquela sociedade importuna.
Não! Não, não pode ser. A raiva alcançava seus níveis supremos: uma lágrima ousara sair de seu olho direito. Maldito! Sempre aquele olho fraco que se entregava primeiro. Fechou-se na escuridão da sua mente, para não ter que suportar admitir que além de fora do controle, estava fora de si. Perdeu-se na sua intriga interna. Desejou sumir.
Os transeuntes não sabiam o porquê daquela moça estar ali, na rua, com tamanha expressão de ódio. E não seria ela que contaria ao mundo o porquê. Sumiu dentro de si. Silenciou-se para bastar sua raiva gritante.

Serviço noturno


Nú artístico - Dalmo de Oliveira

Girou o registro do chuveiro elétrico, deixou as gotas finas d’água gelada passar pelo seu couro cabeludo e desaguar no restante de seu corpo. A madrugada ainda começava. De olhos fechados, refletiu sobre tudo. Percebeu que ainda era nada. Um nada perto de tudo o que queria ser. Como alguém consegue vencer na vida? Por que alguns conseguiam e outros tantos não? Apoiou-se na parede cinza do banheiro alheio e respirou fundo. Tinha que parar de pensar assim, lutar ou aceitar – era o que todos diziam. Ele decidiu lutar, então.
Quem o vesse nas noites e madrugadas, pensaria que o que fazia era prazeroso. Nada – de novo, nada. Ruim a vida de quem fingi para viver. Por isso, ele lutava. Deixava-as felizes, isso é inegável; elas tremiam, sorriam, choravam, gemiam ou gritavam. Diziam que ele era tudo. No fundo, ele sabia que não era nada.
Vestiu-se, observando o corpo feminino desmaiado de prazer na cama. Lastimou sua conduta, mas mesmo assim pegou o dinheiro pago pelo seu serviço e saiu silenciosamente. A madrugada começava: havia tantas outras por aí, à sua espera. Continuaria a ser nada, mais uma vez. 

Vida contada


La mer à Pourville - Claude Monet

Estreitava os olhos para impedir o vento arenoso da praia de invadir sua visão. Observava seu filho levar até as ondas a estrela-do-mar que ambos acabaram de encontrar na margem. Observava ali, um fruto de seu ventre, pequeno, mas com todas as características que sonhara. Via-o, longe, mas dava para sentir o cheiro de sua pele. Nada explicável, coisa da alma. A sensibilidade materna a levara até ali, firme. Viveria cada momento como o último até... Ele ir-se. Não fora concebido perfeitamente, como toda boa mãe sonha: seu filho, agora sorrindo e acenando de longe, do mar, iria morrer antes de alcançar metade de uma simples década. A ciência de seu século não sabia como salvá-lo. Não havia nada a ser feito, além de aceitar...
Sentiu uma mãozinha pequena tocar seu braço. Despertou para o presente. Largou o futuro, os problemas do futuro. Tirou o foco de sua visão do horizonte azul e olhou o rostinho de seu filho, agora próximo. Tinha muitas coisas para mostrar ao seu pequeno fruto. Principalmente o tamanho do amor que ela, sua mãe, sentia por ele. E isso bastava... Por toda uma vida.

Utópico


Leonid Alfremov


Saiu do metrô, sobreviveu à multidão, subiu as escadas da estação e chegou à luz natural do dia nublado. A caminhada era longa, ele bem sabia. Repetia o trajeto cotidianamente, não se lembrava desde quando, mas já era tão comum aquela hora do dia que seus pés mandavam mais em seu corpo do que sua mente. Caminhava sem ficar atento ao mundo. Respirava sem sentir emoção em viver. Havia na sua vida a sensação de passividade que todo indivíduo perfeitamente incluído no vai-e-vem da cidade tinha. No fundo, se importava com esse fato. Queria se libertar, poder viver algo intenso o suficiente que fizesse sua mente comandar seu corpo, sua consciência permanecer alerta e seu respirar tornar-se empolgante. “Mas... Ah, esqueça essa utopia!”, gritava consigo mesmo. Então, voltou-se para si, retornou o foco para os seus pés e sentiu o chuvisco do dia. Mecanicamente, abriu o guarda-chuva.
E era ocupando sua mente com sua “utopia” que deixava a vida passar sem ser vivida. Seus pés continuaram, afinal de contas, o caminho era longo.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.