Archive for outubro 2014

Jantar à luz de vela?


A dinner table at night - John Singer Sargent

Naquela noite, ela estava sozinha entre casais. As conversas eram intermediadas por um beijo de um casal aqui, um abraço cheio de desejo do outro casal ali. Depois de alguns copos de vinho, um deles a questionou se ela não se incomodava de estar ali, "servindo de vela" para eles. Ela muito calmamente respondeu que não. Que quem devia se incomodar eram eles, pois aquela "vela" - que ela estava sendo - permanecia apagada, sem tornar o ambiente caloroso nem romântico. Sem entender, eles pediram explicação. Ela, risonha e saudosa, explicou que o "fogo" que a acendia não estava ali, mas sim em outro lugar. E sem seu fogo - seu amado - ela era vela apagada. Quem estava pior afinal: os casais sem uma vela a queimar ou a vela que esperava pacientemente o dia de queimar plenamente? Envergonhados e descontraídos, continuaram a beber seus vinhos.

Exercícios mentais


And the Bridegroom - Lucian Freud

A cada amanhecer, ela olhava o marido ao seu lado e se imaginava sem ele. Aquele exercício mental a fazia acordar sempre com os sentimentos de afeto renovados,  porque imaginar-se sem ele era doloroso demais para ela. A cada anoitecer, o marido observava a mulher pegar no sono e pensava que teria que ver aquela cena pro resto de sua vida. E sentia aquilo como uma rotina tediosa demais para suportar por tanto tempo. Logo, esse exercício mental dele foi destruindo o casamento. Acabaram se divorciando.
Divorciados, ela superou os fatos mais rápido do que pensava, pois aquela sua imaginação de outrora a tinha treinado psicologicamente para o pior.  Enquanto ele passou a sofrer pelo caos que ele mesmo provocou: sentiu falta daquela rotina segura que tinha e que, por pensar que seria para sempre, acabou destruindo.

Realidade julgada


Girls will be girls - Anita Kunz

Sentada no banco da praça, a moça notou: de um lado havia uma mulçumana e de outro, uma freira. Ambas com somente o rosto à mostra, devido às vestimentas características de cada uma. Seu juízo crítico, não se contendo, pensou no quão triste era estar na posição da mulçumana - imposta a se vestir daquele modo - e louvou a freira, que com certeza escolheu seguir aquele caminho de devoção. Fora dos pensamentos da moça, a realidade sussurrava a felicidade da mulçumana, que um dia, em busca de uma fé a seguir, conheceu a religião e cultura islâmica e decidiu seguir aqueles costumes que julgou honrados. Já a freira guardava dentro de si todos os seus desejos reprimidos de fugir do convento, onde foi deixada pelos pais, em cumprimento a uma promessa qualquer - promessa essa que sempre julgou errada. Juízos à parte, a realidade continuava sussurrando.

Nova batalha


Emociones - Juan Miguel Palacios

Cansou de retocar a pintura dos fios de cabelo. Deixou de rejeitar as doses e comprimidos diários. Cansou de reclamar de hora em hora das dores no joelho. Acabou com a vergonha de sorrir largo e deixar a dentadura meio solta na boca. Deu fim ao incômodo de tirar fotos e de ver registradas suas tantas rugas. Deixou para lá todas essas batalhas medíocres contra a velhice. Reconheceu que a maior e mais essencial batalha que deveria travar era contra a caduquice, a implicância, o sentimento de ser fardo e todos aqueles estigmas da velhice. Armou-se com o orgulho de sua idade. Muniu-se de amor próprio. Partiu para aquela nova batalha.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.