Archive for maio 2014

Relacionamento interessante


The bed, the chair, the dancing watching - Eric Fischl

É desolador ver dia após dia minha velha companheira se esforçar tanto para manter nosso relacionamento interessante. Tem dia que amanheço com ela entre minhas pernas, debaixo dos lençóis. Tem tarde que ela me serve uma taça de vinho com a esperança de esquentar o sangue para a noite adentro. Tem noite que ela se fantasia toda, finge ser o que não é, ser o que todo homem adoraria ter – de acordo com as revistas femininas de autoajuda. Mas eu nunca pertenci a esse “padrão” masculino. O tempo não mudou meus apetites... E é diante desse fato que mais me entristeço: por que razão minha esposa passou a me desconhecer? O que a faz pensar que mudei para eu a querer mudada? Será a velhice e sua perda de memória? Será a rotina e sua ânsia de mudar e enfraquecer os relacionamentos? Não sei. Só sigo a observando, até ver aonde tudo isso vai nos levar.

O fenômeno do fermento


Saturday Afternoon in a Girl's Life - Jeffrey Beauchamp


No domingo, foi para cozinha com a filha de cinco anos fazer um bolo de chocolate para alegrar o dia. Pediu para a menininha que a ajudasse, procurando pelo pequeno pote de fermento. Muito esperta, a menina achou rápido e logo questionou para que servia fermento. Pacientemente, a mãe explicou que uma pequena colher de fermento fazia o bolo crescer. O fenômeno da fermentação foi assistido por ambas. E o domingo foi pura delícia.
Na segunda, depois de voltar do trabalho, a mãe procurou pela filha e a encontrou toda suja de pó branco. Mas o que era aquilo? A menina, pacientemente, explicou para a mãe que era o fermento que ela derramou em cima de si mesma com a expectativa de crescer rápido. Diante daquela inocente cena cômica da filha, a mãe sorriu triste. Uma tristeza por saber que, já tão novinha, a filha já desejava crescer. Abandonar a infância. Sem saber que o resultado do fenômeno do crescimento humano não é assim tão fácil. Nem tão delicioso.

Esmola desumana



Contadina - Ciro Morrone

Sentiu aquela sensação tensa que paira no ar quando aparece uma velha senhora pedinte, contando alguma história muito triste, suplicando por alguma ajudinha – qualquer que seja. Percebeu aquele orgulho calado das pessoas, que negam dar qualquer que seja a ajudinha, acreditando que estão sendo cidadãos ao deixar de perder alguns centavos para alguma esmola. Constatou a falsa filosofia social da esmola como fator de incentivo à pobreza. Uma tese toda para reforçar a destruição da solidariedade humana. A declaração de extinção do altruísmo. O amansar dos egos cívicos. Notou o desamparo da velha pobre senhora. E, mesmo assim, nada fez. Seguiu com sua cidadania forjada.

Nas ruas


Suspended - Christopher St. Leger

Ninguém nunca parou qualquer caminhada para lhe perguntar a razão para ele ter ido parar ali, nas ruas. Se perguntassem iriam se espantar. Na verdade é inacreditável pensar em alguém que abandonou tudo o que possuía para viver de nada. Viver no nada. Mas foi isso que ele fez e assim que vivia. Como mendigo, ele não tinha casa para cuidar, pessoas com quem se importar, contas para pagar. Apenas precisava sobreviver dia após dia. E tinha a possibilidade de mudar a rota quando bem desejasse. E tinha todos os variados comportamentos alheios e situações diversas para observar e quebrar sua rotina. Observava aquelas pessoas indo e vindo e nenhum sentimento de inveja lhe surgia. Aquela era a vida que sempre havia desejado. Nas ruas, viveria e morreria.

Teatro solitário




Conversation - Zack Zdrale

Era ator de teatro. Não só dentro, mas também fora do palco. Costumava usar a técnica teatral de se despersonalizar no dia-a-dia, sempre que surgiam situações complicadas ou sentimentos indesejados. A cada notícia ruim, para não ficar magoado ou enraivecido, fingia não ser ele mesmo. Atuava um personagem qualquer. E assim, nenhum problema o atingia, estando logo no outro dia plenamente recuperado. Mas o que ele não notava era a desconfiança que as pessoas tinham dele toda vez que ele assim se comportava. E era chamado de falso, artificial, insensível. Foi ficando cada vez mais sozinho. Aquilo que para ele era estratégia de sobrevivência, um meio de se proteger dos sofrimentos humanos, se tornou uma armadilha social pra si. Era livre dos problemas. Mas isolado das verdadeiras convivências.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.