Archive for novembro 2011

Contente


Christmas wishes - Heidi Malott

O menino, contente, correu pela casa quando soube que os presentes foram postos debaixo da árvore de natal. De longe avistou os pacotes brilhantes à sua espera. Contente, sentou-se ao redor da árvore, escolheu o maior embrulho e abriu: encontrou uma panela de pressão – Ah, filho, esse é o presente da sua mãe. O menino insistiu com o pacote médio; rasgou o papel dourado e encontrou um livro de matemática – Desculpe-me, filho, esse é o presente da sua irmã mais velha. Ainda contente, o menino recorreu a uma pequena caixa e a abriu rapidamente, descobrindo um relógio de bolso em ouro branco – Oh, querido, esse é o presente do seu avô, abra o último... Lá jazia um pequeno embrulho à espera do menino contente. Ele abriu – contente, mas desconfiado – e se deparou com uma camisa azul. A espera por um brinquedo fora sacrificada por uma simples peça de roupa. E as últimas palavras do sacrifício foram as da explicação de seu pai: Feliz Natal, filho, espero que esteja contente... Caso contrário, contente-se!

Felicidade negra


The colors of black - David R. Darrow

A senhora branca ficava vermelha de raiva. Era difícil suportar a ousadia daquela negra. Pele lisa, macia, traços simétricos, lábios cheios, olhos brilhantes, dentes impecáveis... Todo aquele arranjo facial quase perfeito irritava qualquer branquinha rica da alta sociedade. Pior ainda era suportar a alegria de viver daquela escrava. Não importava quantos dias de açoites seguidos, na manhã seguinte lá estava a pele negra daquela escrava a brilhar.
Um dia, a senhora branca perguntou discretamente à escrava o que a fazia suspirar de felicidade. A simples mulher negra respondeu firme: “Sou feliz, porque me amo antes de tudo. E exatamente por isso, não tenho inveja de ninguém”. Logo ela concluiu, porém sem falar: amor próprio era a loção de beleza que faltava àquela branca senhora.

Conquista



Make laught of it could happen to anyone - Giovanni Rosazza

Não foi o corpo delgado dela. Não foi a voz doce quase inocente dela. Não foi o olhar saliente e atraente dela. Não foi os fios dourados do cabelo em contraste com o cetim vermelho dela. Não foi o toque forte dela em seu ombro. Não foi a atitude voluptuosa dela. Não foi o oportuno convite para o apartamento dela. Não foi a escolha dela por vinho suave. Não foi o resto da noite inteira dedicado exclusivamente para ela... Nada disso foi. Foi a manhã azul clara que nasceu no outro dia... Foi a risada comprida que o acordou... Foi a imagem daquela loira descabelada, envolta num lençol, observando o céu a dar gargalhadas sem sentido. Foi isso que o conquistou para sempre. Quando ela explicou o porquê do riso, foi o arremate para a eterna conquista entre eles: “Ah, estou rindo porque acordei viva, pronta para amar por mais um dia”.

Teias de aranha



Little Acrobat - Kirsten Bailey

Encontrei hoje dentro da sua xícara de café uma teia de aranha. Perguntei-me  qual aranha ousou invadir seu santuário para construir um ninho. Não obtive respostas... Assim como também não ouço mais suas indagações infantis de como a vida se realiza. Saudades de suas indagações. Saudades suas me consomem. Mas não se preocupe, não deixei a saudade me abalar, tratei de lavar sua xícara e recolocá-la na mesa. Um dia, tenho certeza disso, você irá retornar dessa sua fuga e eu, como uma verdadeira mãe que sou, irei recebê-lo com um café quentinho em mãos. Falando em café, tenho que tirar o papeiro do fogo...
De longe, o marido ouvia o monólogo da esposa de frente ao retrato do filho. Este saíra de casa jurando nunca mais voltar. E nunca mais voltaria mesmo... Há quase um ano, descobriram o corpo do adolescente morto por envenenamento. Veneno de aranha.

Desenhado amor


Lucy in L.A. - Fabian Perez

Aquilo sim era amor genuíno. Não precisa de consentimento. Para onde quer que fosse, ele a carregava consigo. Em pensamento, em foto ou, por vezes apenas para confirmar suas lembranças, rabiscava o rosto delicado da sua amada no guardanapo do bar em que estivesse mais uma vez se privando de viver. Afinal de contas, porque viver se ela estava com outro? Preferia embebedar-se a manter a lucidez de um homem rejeitado. E, além do mais, era embriagado que conseguia fazer seus melhores desenhos e isso já era o suficiente para satisfazê-lo.

Estilosos



Vladmir Kush

Ela era cheia de estilo de se vestir. Cada assessório era bem combinado com cada cor de sapatilha que usasse. Cada bolsa ficava em equilíbrio com cada vestido de tecido fino que escolhesse. E ela sempre se irritava com os clichês, com as outras mulheres que se vestiam tão iguais, com os homens que não ousavam. Julgava os demais e adorava seu bom gosto. Até o dia em que conheceu um homem que mostrou a ela o estilo de pensar. Entre eles nasceu primeiro um relacionamento crítico que foi se tornando amoroso ao longo do tempo de batalha que esse homem travou com a mulher. Sim, batalha de mostrar a ela que as roupas pouco importavam. Batalha de fazê-la pensar dentro de si mais do que fora de si. Batalha de fazê-la entender que o que as pessoas pensam é a real essência...
Batalha vencida e comemorada quando ele conseguiu fazê-la se desgarrar do se vestir e, completamente nua, entregar-se ao pensar... Pensar nela mesma e, claro, pensar nele.

Despedida teatral


Reflect - Mary Jane Ansell


“Esse camarim não me fará falta. Os gritos, suspiros, olhares, sorrisos, por mais bem feitos, porém mentirosos, também não despertarão saudades. Deixo as máscaras para trás, com o orgulho de quem já conseguiu superar a mania de atuar – tanto em palco, como em vida. Cansada, largo os monólogos e vou viver. Viverei a realidade de um mundo que não pede que você decore as falas, simplesmente fale o que bem lhe aprazer...”.
De longe, a faxineira do teatro observava a atriz – que fora aposentada forçadamente no dia anterior – falando sozinha dentro do camarim que seria ocupado pela mais nova estrela do teatro. De longe, aquela era a pior de suas apresentações, pois a voz, embargada pelo choro de quem fora passada para trás pelo mercado de atrizes, deixava sua dicção terrível. Aquela atriz aposentada continuaria a monologar, no entanto, cada vez mais frustrada.

Dança assaltante


La colombiana - Fabian Perez


Uma simetria equilibrada requebrava na sua frente. Imensa vontade de delinear as curvas daquela dança contornava os seus pensamentos ressaltados. Lapsos mentais o atingiam como um assaltante discreto que rouba carteira, roupa, atenção, dignidade e vida – tudo de uma só vez. Quando se vê, já está praticamente perdido na tortura que era assistir àquela dançarina anônima. Sem nome, mas com todos os atributos que o faziam esquecer a própria identidade. E para que identidade mesmo? Embriagava-se com um copo de suco de limão puro, no qual o açúcar da bebida era aquele espetáculo.
Porém, espetáculo a parte, de fato aquilo era mais um assalto. Encantado e desatento, o homem gastava todo o seu dinheiro, além de estar sendo filmado e assistido pela esposa que, desconfiada, contratou um detetive e aquela dançarina – tudo para confirmar a fidelidade do seu marido. Ou melhor, futuro ex-marido, que dignidade e, quem sabe, até a vida seriam em breve roubadas por ela mesma.

Desarriscado


The last great romantic - Jack Vettriano

O longo tempo juntos só encontrou sentido naquele derradeiro momento. Perdia-se a vergonha, jogam-se todas as fichas em qualquer aposta... E ele apostou: antes de se despedir, aproximou-se dela, esqueceu qualquer receio, expôs seu desejo. Não pediu, mas deixou o ar se encaminhar do pedido – beijou-a nos lábios, coisa que sempre quis. Beijou e também foi beijado. Pena que era o primeiro e último beijo, pois tinha que ir embora. Ou melhor, logo ele fugiria. Arriscar-se, para ele, era um martírio. Aquele homem era mais um daquele tipo de pessoa para quem desejar algo fervorosamente não é o suficiente para tentar a conquista.  A sensação de ser reprovado o mantinha longe da felicidade. A esse tipo de pessoa faltam riscos bem vividos, beijos mais arriscados, medos superados.

Carta a Narcisa



Girl combing her hair - William McGregor Paxton

Cada traço doce do seu rosto a encantava tanto que ela costumava passar horas inteiras se observando. Talvez por apenas se admirar, ela não conhecesse nenhuma outra beleza mais acolhedora do que a sua própria. Um dia, sem ela perceber, seu pai mandou um pintor desenhá-la numa tela enquanto ela se admirava no espelho. Aquela pintura permaneceu escondida por muitos anos. Seus pais morreram e a velhice veio murchando a imagem da bela moça. Ela pensou que não iria suportar o resto da vida sem a sua beleza para admirar e caiu numa profunda tristeza. Porém, seu irmão, sentindo ser aquele o momento certo, mostrou a pintura e entregou uma carta do pai falecido assim escrita: 
“Filha querida, é uma pena que somente agora que a velhice chegou para você é que poderei falar algumas palavras e você poderá ouvi-las com atenção. Não pense que a felicidade existe na sua imagem. Acredite que as mais belas coisas estão longe do seu espelho. Aproveite o resto da sua vida e viva de verdade. Estou morto, porém se estivesse vivo olharia para o fundo dos seus olhos e diria que agora, velha e desfocada, você está incrivelmente mais linda do que a moça bela que apenas perdia a vida a se admirar. Beleza de verdade está na vida, filha. E por acaso, você já viu alguma imagem pintada da vida por aí? Com amor, seu pai”.

Paixonisse



The son of man - Rene Magritte

Ele um dia fora loucamente apaixonada por aquela professora. Os cabelos escorridos cor de vinho tinto delineando o rosto redondo e aquela boca sempre bem articulada em apresentar os assuntos da prova de história geral... Ah, as melhores maçãs verdes eram escolhidas para aquela professora! Bons tempos! Porém, só as maçãs eram percebidas e ele não recebia a atenção que tanto queria, pois a professora ria quando saía de sala de aula, achando graça daquela ‘paixonisse boba de aluno’. Mas o tempo passou e numa dessas passagens lá estava a professora de cabelos cor de vinho tinto sentada na plateia esperando por suas explicações de mestre numa especialização de história geral. Sim, agora era ele que recebia as maçãs e encarava aqueles olhos femininos cheios de encanto, surpresa e desejo. Agora era ela que pedia seu telefone “para tirar dúvidas” e perguntar se gostou da maçã vermelha... E ele? Ah, ele sempre preferira as maçãs verdes e ria daquela ‘paixonisse boba de aluna’. E como ria!

Memória apagada


Netley Hospital - Paul Smyth

Uma pancada na cabeça e foi parar na área de urgência do hospital. Medidas médicas tomadas e o diagnóstico no outro dia apontava que o homem perdera a memória. Entraram em contato com a esposa e os filhos, e estes foram imediatamente se apresentar diante do paciente. Nada. Eram todos estranhos para o acidentado. Mas ainda mais estranho foi o largo sorriso de alívio e satisfação que a mulher e as crianças deram diante da situação. “Obrigada, meu Deus! Finalmente iremos nos livrar desse homem ruim!”. A mulher deixou o número da conta bancário do homem na recepção para que ele pudesse sobreviver dali por diante sem família. Ela esperava que aquela vida recomeçada trouxesse um homem melhor. Já o recomeço dela e de seus filhos estava perfeito demais.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.