Archive for 2013

Uma deusa


Lady with a muff - Gustav Klimt

Era uma deusa e não sabia. Acordava junto com o sol. Seus passos transformavam o dia. O toque suave de seus dedos acordava o sono de suas crianças. O café que preparava tinha o poder mágico de dar força para seu homem enfrentar os desafios da rotina. Controlava o tempo. Preparava-se para o trabalho ao tempo que embarcava as crianças no ônibus escolar. Selava a sorte diária do marido com o tocar de seus lábios. Partia para o corre-corre, bela, discreta, mas sempre encantadora. Tomava as decisões sem nunca deixar de ponderar o bem-estar de todos. Retocava o batom, enquanto retornava para o seu lar. As crianças eram postas para estudar. Alimentava a família. Com um suspiro, determinava o anoitecer. Com sua voz angelical, introduzia as crianças no mundo dos sonhos. Satisfazia o marido. E acalmava-se, por fim. Tantos destinos em suas mãos, tantos detalhes. Era uma deusa e ninguém sabia.

Amargo acordar


Sleeping Women - Tamara de Lempicka

Acordou pela primeira vez ao lado da esposa. Olhou as pálpebras dela ainda fechadas. Os lábios entreabertos, por onde passava uma respiração leve. Ao invés de se sentir encantada com aquele momento, se sentiu estranhamente amarga. Aquele seria mais um dia em que teria que encarar os olhares alheios surpresos e indignados. Pois aquela mulher ao seu lado era a razão dos seus dias terem se tornado cheios de críticas, sussurros mal intencionados, comentários falsos e sorrisos amarelados. Acabou se apaixonando por uma mulher de uma maneira que nenhum outro homem a fez se apaixonar. E com essa paixão veio todo o preconceito feroz da sociedade. Casada e amada, ela ainda não tinha certeza se seria capaz de enfrentar uma vida daquele jeito. Amargurada com aquele pensamento, fechou os olhos. Preferiu voltar a dormir.

O imprevisto


Drag - Zack Zdrale

Nunca soube como lidar com a imprevisibilidade da vida. Quanto mais admitia isso para si mesmo, mais surgiam situações fortuitas no seu dia-a-dia. Frustrava-se cotidianamente. Vivia em um inconformismo quase absoluto. Sentia que não tinha capacidade de planejamento. O que ganhava era sempre uma profunda descrença em si mesmo ou uma raiva impertinente das pessoas ao seu redor. Como podia ser a vida assim tão inesperada? E então, em um desses acontecimentos imprevistos da vida, toda a raiva, o inconformismo e a frustação se acabaram. Uma causa completamente imprevista o atingiu. Morreu de forma tão fugaz que nem teve tempo de refletir sobre a impermanência daquela sua vida. Cessou-se, para ele, o imprevisto.

Infeliz paixão


Hombre - Alberto Pancorbo

Tão apaixonado que ele era por aquela mulher! Tão encantado pelas ações dela, pelo comportamento dela, pela beleza dela... Enlouquecido de paixão, mas sem chances de se expressar plenamente. Seu mal era viver em uma sociedade onde homens não podem se apaixonar perdidamente pelas mulheres. Os homens não devem se expor tão submissos à paixão por uma mulher. Pois os homens são seres superiores e o amor é armadilha para os fracos. Declarar-se louco de amor por uma mulher era declarar sua própria fraqueza. Eis o martírio daquele homem tão apaixonado. Eis a infelicidade das mulheres daquela sociedade.

A espera


Girl in white dress - Hollis Dunlap

A espera pelo marido começava ao entardecer, depois que todos os afazeres de casa já haviam acabado. Ela sempre lembrava o início do casamento: a pontualidade do marido em casa, disposto a jantar ao seu lado. Em seguida, sentia na alma as lembranças mais recentes de um marido que se atrasava, sem justificativas e sem paciência para nenhuma conversa.  Aquelas esperas já faziam parte de sua rotina. Até o velho sofá já tinha o formato do seu corpo. Suas noites passavam num sofrimento calado. Assim como os bons sentimentos que daquele casamento se afastavam.

Existência esquecida

Regret - Katie O'Hagan

Vivia no vale do esquecimento. Colecionava recortes de memórias. As poucas lembranças que visualizava eram incompletas. Faltava o sentimento do momento. O passado se confundia com um desejo futuro. O presente mergulhava no peito e se incorporava quase imediatamente aos retalhos do passado. Tinha certeza do passo que estava dando, mas logo sentia medo pelos passos não dados. Vivia arrodeada de gente, mas plenamente sozinha. E não sabia se explicar. Não sabia o porquê daquele seu estado psicológico. Na realidade, nem se questionava sobre isso. Sua vida era um esquecer a cada instante. E quem disse que ela era infeliz?

Seu perfil


Blue Lovers - Marc Chagall

Era seu perfil preferido. O nariz não era simétrico. E ela não gostava de simetrias. Os olhos eram fundos, como se o crânio afundasse com o peso brilhante daquelas duas amendoadas pedras preciosas. Os lábios, duas pétalas naturalmente róseas que repousavam por cima de uma dentadura firme a sorrir. De longe ou de perto, era definitivamente o seu perfil preferido. Era um observar radiante. Um despertar de desejos. Um se aproximar em contentamento. Era seu, e sabia.

Última lição - o vazio da morte


Death and Life - Gustav Klimt


Aos dez anos, suportou a morte de seu pequeno peixe. O pai optou por preencher o vazio dele com um cachorrinho - que viveria mais. Aos vinte anos, a morte levou esse cachorrinho. A dor foi maior e o pai lastimou não ter previsto tamanho sofrimento. O jovem desistiu de criar animais; resolveu preencher o vazio com os humanos. A dor persistiu: ora a morte resolve levar seus avós queridos, ora os amigos próximos desapareciam como se tivessem morrido. O homem resolve, então, constituir uma família - esposa, filho e filha. A esperança do resto da vida ao lado desses preencheu seu novo vazio. Mas eis que recebe a notícia do aproximar da morte do pai e percebe que logo teria que suportar um vazio lancinante. Chorando no leito do seu velho, ouviu sair da boca deste essas palavras:
“Meu filho, me perdoe. Há muitos anos atrás, eu perdi a oportunidade de lhe ensinar a viver de verdade. Quando você tinha dez anos, com o seu pequenino peixe morto nas mãos, eu deveria ter lhe ensinado que a morte é insuperável e que ela faz parte da vida. Aceitá-la é viver. Mas ao invés disso, ensinei-o a preencher o vazio e agora você é um homem triste, cheio de lembranças vazias, sofrimentos calados, dores profundas… Isso foi o maior mal que cometi em vida, então peço que me perdoe e aprenda essa última lição. Aprenda, por favor, pois só assim posso morrer mais vívido e deixar você viver sem vazios”.
Essas palavras foram como raio de luz na escuridão da alma daquele homem que chorava. E o olhar iluminado do filho foi suficiente para o pai compreender que conseguiu seu perdão. A morte veio tantas outras vezes. O vazio, não.

Som do café


Xícaras - Valéria Vidigal

Ele gostava de ouvir o barulho da cafeteira em plena seis da manhã. Sentava ao lado da máquina e silenciosamente esperava pelos roncos da água quente trespassando o pó de café. Ela, como boa filha que era, nunca ousava interromper aquele momento de contemplação dele. O bom dia sempre vinha depois do primeiro gole de café do pai. E aquela cena se repetia como oração em casa de religiosos. A religião do seu pai era o barulho do café quente.
Hoje, não o tinha mais. Ele partira dessa para melhor… Ou para pior, vai saber! Mas todos os dias, em plena seis da manhã, ela sabia que o café estaria sendo feito em algum outro plano da existência. Lá estaria, seu pai - cafeteiro de deuses e demônios.

Contemplação


Starry Night - Vincent van Gogh

É sempre um sacrifício acordar cinco horas da manhã. A cama está quentinha, os três travesseiros me confortam e o lençol me envolve como se fosse a própria placenta materna de outrora. Mas levanto, tentando ignorar o peso da sonolência nas pálpebras, e me visto rapidamente. Saio na gélida madrugada da rua. Corro. Depois que o sangue quente desperta o corpo inteiro, paro e observo o meu redor. Então, sempre – digo, sempre! – suspiro de satisfação: contemplar a natureza despertando e chamando a cidade para acompanhá-la é recompensador. Uma cidade inteira a se levantar. Os raios de sol a se anunciar. Os mínimos barulhos de vidas que, na algazarra do cotidiano urbano, não se fazem notar... Há vidas! Confirmo que o sacrifício de alguns minutos atrás é pequeno demais perto da contemplação da vida. Ah... E volto logo a correr. Viver.

Por demais e mais



Chocolate Birthday Cake - Carol Engles

Completara metade de um século de vida. Pôs em revisão todo aquele tempo e tirou suas conclusões. Estudava demais, mas não tinha certeza sobre o que tanto sabia. Lia demais, mas não contara quantos livros foram concluídos. Escrevia demais, mas, sem nenhum livro publicado, apenas rascunhos abandonados. Amava demais, tanto que até o momento ainda não se satisfez com somente um companheiro. Viajava demais, mas não fazia listas de lugares conhecidos, pois tratava logo de desconhecê-los para ter que retornar algum dia. Concluía, finalmente, que não se sentia satisfeita com seus cinquentas anos. Queria viver mais. Tinha sonhos demais para realizar. A cada dia a mais que vivia, nasciam mais vontades a saciar. Seria pedir demais por mais cinquenta anos de vida? Não hesitou: curvou-se sobre o bolo, apagou as tantas velinhas e fez esse pedido.

Traumas


Male Nude Model - Henri Matisse

Ele passou a ter sérios problemas para ficar sozinho na sua própria casa depois daquele dia. Aquele traumático dia. Não, ele não podia revisar aquele dia mentalmente, pois seria capaz de invocar o caos universal dentro de si mesmo. A questão é que – para uma pessoa que adorava ficar sozinha – aquele seu complexo de repulsa à solidão estava o tirando do estado espiritual normal. Queria superar seu trauma. Voltar a sentir prazer na solidão... E conseguiu isso à medida que ia tentando fugir desta, buscando companhia de outros e descobrindo, com isso, a amargura das amizades superficiais, a falsidade dos parentes cansativos, a obsessão dos muitos templos religiosos, o vazio das ruas e festas urbanas. Esses dias, em que não esteve sozinho, o encheram de traumas. Eram verdades nuas e cruas. E, então, recordou do aconchego de sua própria casa. Dos dias em que fora feliz consigo mesmo, na companhia de um livro, um café, uma cama ou um filme. Redobrou suas forças e encarou as paredes vazias da sua residência. Voltou a frequentar a sua própria solidão. Fugindo dos traumas da sociedade, curou seu próprio trauma.

Lembranças do verão


Migração de pássaros - Johannes Larsen

Uma visão. De longe, ela permanecia de olhos fechados vislumbrando um horizonte que só ela tinha acesso. Nos tímpanos retumbava o barulho bravo do mar. Ficava quieta lembrando aquele perfil enfrentar as ondas. De tão concentrada que estava, conseguia degustar o sal da água que invadia a boca dele, mergulho após mergulho. De longe, ele – seu amante – desfrutava o prazer da maré enchendo, revolta na praia da Barra Grande. Aquela cena ficaria para sempre cravada na memória da observadora. Recortes de momentos simples, naturais e de puro deleite.  O fortalecimento de um sentimento sem nome, sem data e sem pressa.

Oração de saudade



Marc Chagall

Quando só as fotos sobram e você tem que se acostumar com aquele perfume se esvaindo. Quando você não sabe se comemora os dias passando, na esperança da dor parar ou na tristeza de ir ficando mais distante do último toque. O último abraço... As tentativas de se livrar dos momentos tristes, lembrando os momentos felizes. O dom de ir escrevendo contos sem sentido e sem objetivo... Apenas "escrever como forma de oração", como já orava Kafka. De reza em reza, a súplica para a saudade passar e a alma aquietar no fundo do peito aflito.


Em memória a minha Lilica.

Primeiro encontro



Natalia - Fabian Perez

Então, conte-me mais sobre você – perguntou com uma voz suave, tentando seduzi-la. Ela não pareceu seduzida; pôs-se a falar: Bem, eu não sou uma pessoa de muitas certezas e se eu começasse a afirmar uma porção de fatos sobre mim, estaria mentindo para você. Sou uma pessoa de incertezas. Não tenho nada favorito, nada predileto. Ainda não sei se acredito na ideia de céu e inferno, anjos e deuses, ou se passo a me preocupar com essa vida, sem a expectativa de outra depois da morte. Não confio em cachorros, mas acho que os humanos acabam sendo mais perigosos. Não acredito no governo, mas temo que uma vida sociável sem um seja impossível. Tenho medo do mar, ainda que um dia eu queira morar em frente à praia.
Ele, meio surpreso com aquele jato de informações cuspido na mesa do restaurante, soltou um: Nossa, como você é interessante! Em resposta, meio desiludida ou mesmo sem certeza sobre o que sentir por aquele cara, ela disse: Não tenha tanta certeza assim.

Domingo





Window with view on the Island Bréhat - Marc Chagall

Um incenso queimando. Na caneca verde, um chá de maça e canela esfriando. A solidão, deitada na cama, chamava para dormir. Lá fora, os pássaros riam. Lá dentro, as faltas e os excessos se batiam. Despencava dos olhos o peso daquele domingo, formando ali um inchaço escurecido. Nem som, nem companhia, nem nada. Apenas a espera pela segunda.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.