Archive for outubro 2011

Sonhos sem fronteira



Dreamer - Jennifer Balkan

Acabara de passar pela Torre Eiffel, antes de chegar a sua cozinha, e começar a fazer a limonada com limões da China. Avistava alguns escoceses e suas gaitas de Highland no seu quintal. Riu das araras azuis amazônicas que brincavam no galho de roseiras roxas, que plantou no dia de Ações de Graças - que passou na pirâmide inca do México. Rindo, ela fechou os olhos. A confusão que via, sentia e vivia era todos os seus sonhos que não encontravam limites na sua realidade e invadiam-na, tomando conta dos seus espaços como se realmente ali estivessem. Ela nunca soube definir uma fronteira entre seus sonhos e a sua realidade; vivia ambos de uma só vez. Com o tempo, ela parou de achar isso um problema e aceitou com satisfação toda a sua imaginação tão fértil. Afinal de contas, quem disse que é preciso estar dormindo para sonhar?

Acidente


Woman grief - Cynthia Angeles

Ele fora um acidente. Qualquer erro que cometesse – uma queda, um bom dia esquecido, uma nota ruim, uma risada alta demais – era motivo para sua mãe relembrar que ele fora um acidente. Ele era um acidente contínuo na vida da sua mãe solteira. Foi perseguido com esse estigma até o dia em que, distraído, bateu o carro, estraçalhou-se nas ferragens, virou um morto-vivo. Sim, ficou em coma. Mas durou pouco tempo na cama da UTI, tempo este suficiente para ouvir o choro da sua mãe ao lado, lamentando aquele acidente de carro, pedindo a Deus que o acidente não tivesse ocorrido, que seu filho voltasse. Não entendeu como a mãe agora pedia que um acidente passasse para outro acidente voltar. Cansado e sem querer entender mais nada, acidentalmente, entregou-se ao fim.

Sede rabiscada



The dark room II - Fabian Perez

O garçom entregou um guardanapo rabiscado na mesa do homem. Uma caligrafia bem desenhada dizia: “Traga essa sua garrafa para cá. Junta essa sua vontade de se embriagar com essa minha vontade de ser bebida”. Poética, quase direta e bastante eficaz. O homem, alcoolicamente lascivo, aceitou aquele imperativo. Noite adentro, matou a sua sede com aquela mulher sedenta. Deixaram o limite ébrio do desconhecido se embriagar.

Tentativas desistidas


Just another day - Jack Vettriano

Ao longo do caminho de volta, ela pensava em voltar e gritar para que ele largasse aquela frieza e descansasse o corpo nos seus abraços tão desejados. Mas o corpo dela não sentia coragem de mergulhar naquele pensamento, naquela declaração. O seu corpo estava rijo de orgulho. Não se rendia a uma tentativa de amar. Porque no olhar dele – aquele olhar que nunca expressava nada – encontrou o medo de também tentar amar. Sem tentativas, sem declarações... Apenas a frieza reinava e os anseios perdiam-se no abismo da esperança que cada um deles carregava no peito. Por isso, ela resolveu dar as costas para ele e fazer seu caminho de volta. Continuou seu caminho reto, mesmo pensando naquela loucura incerta, cheia de rodeios e curvas escorregadias. Caminhando reto, ainda desejava escorregar, derrapar naquele amor gritante que ele resolvera, sem querer, despertar nela.
De longe, o homem observava a mulher desistir dele. Mesmo diante disso, ele ainda a admirava, pois pelo menos ela conseguia caminhar. Já ele, nem reto nem rodeios, apenas sem caminho, permanecia parado. Também, sem tentativas de amar.


Saborosa ajuda



Bodegón - Jose Paul Perez

Ele era uma das maiores referências mundiais em gastronomia e, também, um requisitado mestre de cozinha. Mas não era perfeito: tinha o defeito árido de criticar o mínimo tempero mal colocado ou a pitada de açúcar que faltava em determinado prato. Dizia para todos que achava toda a culinária do seu povo e das pobres donas de casas pura ignorância.
Um dia, viajando de carro rumo a uma cidade aonde iria palestrar, sofreu um acidente. Uma tragédia da qual somente ele saiu sobrevivente. No meio do sertão, saiu desolado pedindo socorro. Encontrou um casebre e sentiu o cheiro do feijão no fogo. Percebeu que estava faminto até ser notado pela pobre senhora. Recebeu as ajudas necessárias e até mesmo um prato farto do feijão. Experimentou e, dessa vez, sentiu o sabor mais incrível de toda a sua vida. A degustação o fez entender: a fome misturada com o prazer de poder ter comida naquele momento difícil tornou aquele feijão saboroso. E foi aquele prato simples da sertaneja que o socorreu – tanto da tragédia quanto do seu defeito de criticar tudo e todos.

Intocada



Ezquizofrenia II - Denis Nuñez Rodríguez

“Sabia que eu não permito que ninguém toque em você? Você deveria parar de surtar comigo, deveria me agradecer. Estou te protegendo, sabia? Hein, sabia? Pare de falar alto, ninguém precisa saber que estou do seu lado. Mas, olhe bem, eles são pessoas ruins; eles não podem tocar em você, por isso eu estou aqui... Sim, sim, eu estou aqui para te mostrar o quanto eles são ruins...”. Essa voz não se rendia aos altos lamentos da mulher. De fato, mesmo andando entre multidões, ela nunca sentiu alguém esbarrar nela. Todos se afastavam, não porque ela estava protegida como aquela voz bem repetia, mas porque todos sentiam repulsa e medo diante de uma mulher que falava sozinha, aos gritos, implorando para que a deixassem em paz. Ninguém entendia sua esquizofrenia. Ninguém, assim, poderia ajudá-la. E ajuda era o que mais ela precisava.

Vão amante



Cigar Bar - Brent Lynch

Ele adorava a falácia que via nos olhos das mulheres. Vãs mulheres. Mergulhava em cada pequeno romance como se fosse pedir a mão – e todo o corpo – da mulher em casamento no dia seguinte. Mas, rindo consigo mesmo, esquecia o que se passara no dia anterior, sempre que os seus olhos acordavam na nova manhã. Ele nascera para aquela vida suburbana. Sorrateira vida de quem esconde mágoas em copos de rum e em amassos descomprometidos. Sim, aquele homem escondia a sete chaves a mágoa de ter sido traído pela primeira mulher que amara. E, como se servisse de analgésico para sua própria decepção, passou a decepcionar cada uma das mulheres que com ele se envolvia. Passou a ver apenas falsidade nos gestos de carinho. Passou a enojar qualquer sentimento declarado. Então, desacreditado, nunca mais amaria. Apenas continuaria a pagar mais um copo de rum e a usufruir daquelas vãs mulheres.

Sentimento animal


Cat chasing a bee - Liu Shukui

Afundou-se na poltrona e acariciou o seu gato de estimação. Suspirou: “sabia que ele me pediu em casamento?”. A mulher estava realizada, iria se casar o mais rápido possível com aquele homem e, então, construir seu lar feliz. Desde esse dia, não demorou para o gato ter toda a sua vida mudada: casada, a mulher foi morar na nova casa, levando o gatinho. Porém o marido não considerou suportável viver com o bichano, providenciando imediatamente a venda do animal da esposa. Ela, apaixonada e com medo de decepcionar o marido, deixou o seu gato ser vendido, com lágrimas aos olhos.
O gato, profundamente apegado àquela mulher, mesmo muito longe, planejou a fuga e seguiu seus instintos à procura dela. Levou meses inteiros na rua... Meses estes suficientes para o casamento ser desmanchado. Sim, aquele homem pouco se importava com os desejos da mulher e não dava a mínima para ela. O divórcio saiu em menos de um ano. 
Separada, a mulher lembrou-se do seu gato querido... Foi quando ouviu o miado dele vindo da janela. Ela logo compreendeu que era melhor amar um animal do que um ser humano. Pois amor, na realidade, era um sentimento animal.

Paixão mortal


The letter - Jack Vettriano



‘Lembre-se de mim’. Foi assim que terminou o bilhete. Sim, não era uma carta, longa e densa, apesar de seus sentimentos assim serem. Era tão denso o que sentia que este era o motivo de ela o estar deixando. Pesava na sua alma aquela paixão. Como se os abraços dele fossem sentenças de prisão perpétua. Como se os beijos dele fossem pequenas doses de veneno. Aquela convivência a estava sufocando, matando aos poucos como um câncer sutil. Mas o que ela sempre procurou não era aquele inebriante amor. Um relacionamento leve, isso sim.  E mesmo que não conseguisse encontrar mais ninguém, só em pensar na leveza de estar sozinha, já se sentia medicada.
Tomada a decisão, deitou-se no divã e, sem querer, adormeceu. Não reparou na hora que ele chegou e leu o bilhete solto entre suas mãos. Não reparou quando ele atirou contra seu corpo indefeso. Não teve vida suficiente para ler o bilhete que ele deixou antes de sair da casa: 'lembrar-me-ei de você, meu amor, não se preocupe'.

Saga fantástica


Vladimir Kush


A mulher-borboleta corria os nove mares da região oeste do território inimigo. Lutava para não deixar seu perfume escapar pelas suas asas, pois só através disso os homens morcegos poderiam rastreá-la. Sentiu saudades do seu paraíso floral. Paraíso este que seria o inferno para aqueles seres da escuridão. Porém, não se sentia fraca e nem queria desistir de um dia encontrar a pétala perdida... Com esta, o portal mandaria os suspiros celestes e, logo, suas asas funcionariam! Por enquanto, continuava a correr. Até que uma luz invadiu seus olhos...
A mulher acordou com a fantasia de seu sonho na cabeça. O sol acabara de invadir seu quarto. Algumas flores do seu jardim pareciam brilhar na sua janela. Lembrou-se de cada detalhe do sonho e, em um salto, pôs-se de pé com uma ideia brilhante: “vou escrever um livro!”. Aí nasceu um best-seller.

A voz da concha


Shells on the shore - Susan Jenkins



Brigaram. Ela saiu correndo aos prantos. Internou-se na própria casa. Fez greve de socialização. Demorou um tanto de dias para voltar a sair. Deixou as lágrimas faltarem, a respiração cansar de ser violenta e o coração parar de acelerar. O tempo não cessava de passar e veio o dia em que ela resolveu sair. Escolheu a brisa do mar e a areia da praia como companheiras de reflexão. Afinal de contas, não foram muitos dias que se passaram e a briga ainda estava pendente. O amor dela também... Tropeçou! Despertou para a realidade de frente a uma concha marinha. Pegou-a e pôs no ouvido. Porém, ao invés de ouvir o barulho do mar, ouviu a voz dele. A voz do seu amor pendente. “Por favor, desculpe-me, eu não te esqueci...”. Ela achou real demais para ser coisa da sua cabeça, então se voltou para trás e o viu. Ele também havia escolhido a brisa do mar e a areia da praia como companheiras para aquele amor pendente. Perdoaram-se. Amaram-se ali mesmo. E a concha permaneceu em silêncio.

Esposa contemplativa


Figura assomada a la ventana - Salvador Dalí

O homem acordava e não encontrava a esposa do seu lado na cama. O homem tomava café, almoçava e jantava sem a esposa o acompanhando à mesa. O homem saia e voltava para casa e não tinha a esposa para dar-lhe adeus ou recebê-lo de braços abertos. Ele – marinheiro de longa data – era recém-casado com uma pobre moça sertaneja, eis a razão. E como sertaneja, a moça nunca havia visto o mar. Indo morar com o marido, perdeu o resto da sua vida apenas na pura contemplação daquilo que ela nunca ouvira falar. A mulher tinha medo de um dia, tirando os olhos da praia, o mar sumisse e o sertão voltasse.


Avaro amor



Purse - Vladimir Kush


Pudesse surgir a mulher mais bela para aquele marido, mas nenhuma substituiria a essencialidade da sua esposa. Da mesma forma: nenhum homem, o mais charmoso e instigante que fosse, mudaria os fortes sentimentos daquela esposa pelo seu marido. Formavam um casamento de pilares rígidos, sempre juntos, sorrindo e expondo a riqueza do seu relacionamento. Sim, literalmente, expondo a riqueza de ambos. 
Ela foi feita para ele, com toda a rica conta bancária da sua importante família. Ele foi feito para ela, como herdeiro único da fortuna de uma das maiores multinacionais do planeta. E o enlace entre ambos era complementado por uma forte avareza. Eram felizes porque nunca encontraram outra pessoa mais avarenta do que eles próprios. Foi o jeito avaro e mesquinho de ambos que os fizeram se apaixonar um pelo outro. Além, claro, dos milhares de dígitos dos seus saldos bancários.

Palhaçada



Três palhaços - Georges Rouault

O menino amava os circos e, principalmente, os palhaços. Gargalhadas eram fartas sempre que entrava em contato com as palhaçadas. Porém, de tanto ir ao circo, um dia o circo retribuiu uma visita à casa do menino. De madrugada, três palhaços invadiram sua casa, amarraram sua mãe, bateram no seu pai e levaram todos os objetos de valor que lá havia. Antes de irem embora, no entanto, os palhaços intrigaram-se com a seriedade do menino que permanecia olhando-os fixamente. Sentiram-se ameaçados pelo olhar da criança e, por isso, decidiram matá-la. O espírito do menino morto foi buscar nos céus os circos sagrados para gargalhar.

Gorda vida



Sitting woman II

Desde menina, o que ela mais amava fazer era comer. Por isso, suas fotos de criança eram registros de toda a sua fofura. Foi uma criança quase obesa, uma jovem gorda e guiou-se no caminho de uma adulta gordinha – sempre comendo para se sentir feliz. No entanto, quando se tornou uma grande empresária, todos os seus assessores impuseram que a magreza era necessária para cultivar a boa imagem da empresa. Regimes árduos, carboidratos limitados, açúcares determinados... Boa parte do seu gordo salário foi gasto com nutricionistas, ao invés de compras das melhores iguarias.
O regime a mergulhou numa profunda depressão. De mulher gorda e bem-sucedida foi ser mulher magra e mal sucedida. Perdeu o ânimo dos negócios e encaminhou a empresa à falência. Porém, não se deixou abater: hoje é uma simples e gorda secretária, ganhando o necessário para fartar-se com aquilo que a deixava mais feliz: comidas, comidas e comidas.

Abstrata


Zhannet - Serhiy Reznichenko


Era cheia de glamour e prazeres. Cheia de presentes... Tantos presentes que até se sentia uma deusa a receber diariamente oferendas de crentes religiosamente cegos pelo seu charme. Era exatamente o seu charme e todos os seus rebolados que os dominava. Porém, não importava a tamanha transcendência que ela era capaz de provocar nos seus galanteadores, nenhum deles ousava abstraí-la da simples crença para o real – ninguém a queria como companheira legítima, como mulher para toda a vida. Apenas a queriam como deusa nos momentos de pecados, queriam-na apenas para a sensação de absolvição, de ritual. Era por isso que sempre séria ela permanecia. Como uma imagem de santa imaculada, séria e de olhar fixo ficava. De santa, nada tinha. De deusa, também não. Tinha era muita solidão de mulher abstrata a observar homens fugindo das suas mulheres concretas.

Canto da sereia



Green Water - Kellie Marian Hill

Ela ouvia, em todos os crepúsculos, aquela voz suave como algodão a cantarolar. Percorria todo o bosque, se sentindo guiada pela doce melodia, invadia os pântanos e acabava sempre frente ao grande lago, procurando quem seria a fantástica cantora. Porém, a música cessava e sem nada se manifestar, voltava para sua choupana.
De dentro do lago, a sereia ficava confusa e atônita, sem entender como que seu canto fantástico atraia sempre aquela moça, ao invés de atrair os homens. A sereia assim permaneceria em dúvida, pois o que ela não sabia era que na mente e no coração daquela moça existia uma personalidade e fortes sentimentos de um homem.
Os transtornos sexuais ainda não haviam chegado ao mundo das sereias.

Amadora



Girl - Nina Reznichenko

Ela amava imensamente. Acordava sorrindo, porque o amor escapava pela sua garganta e esticava os músculos do seu rosto em uma bela risada. Andava como se penetrasse na terra um pouco do amor, que pelos poros dos seus pés, escapava. Deixava o vento assanhar seus cabelos para sentir um pouco do amor acumulado nos fios pretos se desprender e voar. O amor que ela possuía, de fato, não cabia mais dentro dela. Os espaços entre as vísceras já estavam ocupados; o sangue circulava com a dificuldade de quem tem um coração amante.
Mas não morria. Nem com todos os seus órgãos emperrados pelo amor, com seus neurônios embebedados pelo amor e seus brônquios afogados pelo amor... Não morria, exclusivamente por isso: por viver pelo amor. Todo o seu corpo era para, pelo e devido ao amor.


(autobiográfico e em homenagem a Cândido Sales Gomes)

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.