Archive for março 2012

Donzelas sozinhas



Friends - Henri De Toulouse-Lautrec

Um calor tomou conta de todo o seu organismo. Corou as bochechas. Sentiu o corpo agitar-se. No entanto, permaneceu imóvel para que ninguém percebesse sua exaltação. Em mãos, um bilhete rápido e penetrante – como uma bala, não sabia de onde vinha e como chegara ali, mas lhe partia o peito de forma decisiva. Ela sabia bem quem era o atirador. Ou melhor, atiradora. A letra feminina clamava: “Matemos nossas curiosidades. Assim como eu, sei que as tem; ao meio dia, no quarto... Eu e você, donzelas sozinhas. E só”. Em mente, ela repetia – como para ter certeza – o ‘meio dia’ e o ‘sozinhas’. As donzelas se descobririam. Agora, não seriam como uma bala, mas como uma flecha de duas pontas que perfuraria ambas, numa junção só. Sozinhas.

O outro lado do mundo



Sweet Nothings - John William Godward

O bilhete do seu amado mostrava uma despedida chorosa e rápida. O marinheiro iria navegar a trabalho para o outro lado do mundo. A moça apaixonada procurou saber onde era o ‘outro lado do mundo’. Um amigo metido a geógrafo desmentiu a teoria do horizonte, disse que a Terra era redonda e que, portanto, o marinheiro estivesse abaixo deles. Enquanto outras moças aguardavam seus marinheiros olhando o horizonte, ela passou o resto dos seus dias crente que, abraçando seu próprio chão, estaria mais próxima do seu amado viajante. Deitava todas as tardes, agarrada ao mundo, numa espera incessante.
Porém, talvez porque o planeta gostou de se sentir abraçado, o outro lado do mundo não permitiu ao marinheiro retornar aos braços de sua donzela. Nunca mais os amantes se abraçaram e o planeta permaneceu embalado no fiel amor daquela moça.

Cidadãos cegos


The Empire of Light - Rene Magritte

Em uma ocasião – como outra qualquer – os vizinhos sentados na calçada ousaram lançar seus olhares ao horizonte acima dos tetos da vizinhança. A escuridão daquele novo mundo saltou aos olhos. Não que o dinheiro público não tivesse sido usado na distribuição de iluminação. Na verdade, os cidadãos eram ofuscados justamente pelas tantas luminárias. O tanto que se podia enxergar da cidade, com o auxílio das lâmpadas, era o tanto que se tornavam cegos diante da natureza. Estrela alguma parecia importar aos casais românticos; nuvem nenhuma era mais sondada sobre suas formas e desenhos. O novo mundo apagava aos poucos um mundo que não precisava de tanto para ser contemplado – pois este, sem gasto de energia, poderia felicitar quem se dispusesse a ver os simples espetáculos da natureza. Aquele mundo escuro, no entanto, nada felicitava... Somente cegava.

Desconfusão



Leda Atomica - Salvador Dali

Cansada de suas próprias confusões, resolveu confundir-se para sempre. Desconheceu os conhecidos e conheceu os desconhecidos. Aderiu a todos os sotaques. As suas roupas em nada conferiam um estilo único e próprio. Invadiu o mundo das linguagens, como se não tivesse país de origem e língua mater. Esqueceu seu endereço e passou a conviver com as ruas, os quartos, os bares, os campos e mares. Abandonou suas limitações e identidades; tornou-se mundial. Não mais a pergunta “quem sou eu?” veio enlouquecer sua cabeça, pois se reconhecia em tudo e todos. Em consequência não mais discriminava, não mais se regionalizava e muito menos julgava os diferentes. Acabou definitivamente com as confusões dos que se classificam. Confundiu-se com o universo e seguiu feliz.

Ocaso da superioridade



Man's head - Lucian Freud

Um tanto de defeitos e uma pitada de qualidades: fez-se ser humano. Cheio de ossos, carne aqui e ali, pintava no rosto a imagem da superioridade. A Terra não cabia em suas mãos, mas na mente ele a dominava. Isso o consagrava. Era a espécie que subordinava as demais: tinha no código genético a garantia disso.
Até que um dia se viu prostrado em um hospital. Motivo: picada do mosquito Aedis egypt. Tornou-se dengoso. Quase morto. As tecnologias e tratamentos humanos não surtiam cura. Lembrou o grande Darwin: nem o mais forte, nem o mais inteligente, o real superior era quem se adaptava efetivamente às mudanças. E quantas reviravoltas a vida dá, não? O humano teve que se mudar de mundo. Não mais vivia. No atestado de óbito, o mosquito vencera o humano.

Conhaque!


Colors of Cognac - Andy Mathins

Santo conhaque! A mulher já esquecera que não possuía um tostão para pagar o táxi na volta, mas o conhaque na certa a ajudará a dormir em alguma calçada gelada da cidade como se fosse num colchão d'água de algum Hotel Plaza. Ela vai estar entregue a qualquer homem aventureiro (até aos santos também); terá os sonhos mais energéticos da noite citadina;  além de arrancar risos de desconhecidos e gargalhar fartamente como quem ganha na loteria. O álcool é amigo de todos e todas. Manhã, tarde ou noite... Basta escolher o momento em que se afastar do mundo e esquecer da vida é a melhor decisão a ser tomada. E o conhaque? Ah, esquenta a pele como um cobertor divino! Porém, como tudo possui um porém, o santo conhaque irá despertá-la numa manhã aturdida, despedindo-se de mais uma alma problemática e deixando desamparada uma mulher que, apenas depois de gastar com doses e mais doses, perceberá que o álcool não resolve problemas e a vida só é bem vivida por gente sóbria.

Almas gêmeas


La promenade - Marc Chagall


A gente encontra nossas almas gêmeas quando as manias e anseios mais particulares passam a ser partilhados em dupla, em um encaixe transcendental. No caso dela, porém, era diferente, pois ela não possuía grandes desejos, requisitos nem costumes invioláveis que não fossem facilmente adequáveis. Por isso, todos os amores que surgiram na sua vida foram almas gêmeas para si, desde os mais sem personalidade aos mais irremediáveis. Ela ia se encaixando na vida deles e se sentindo completa... Até a ruptura e o sofrimento do fim. Ela era sempre a que sofria mais. Eram almas gêmeas sendo perdidas, afinal. Não encontrou ninguém para ser “para sempre”. Cansada de se decepcionar, recriou para si que 'alma gêmea' nada mais era o estado de relacionamento que, momentaneamente, a deslumbrasse. Com isso, viu-se agradecida, pois, por ser tão modelável, podia ser feliz de muitas formas... Com diversas almas que por acaso a tomasse entre os braços e prometesse mais um falso e limitado “para sempre”.

Relato de uma "inferior"



Edward Hopper

De longe, observava seu passado brilhante refletido num emaranhado de papéis desinteressados. A biblioteca municipal era menos atraente do que antes. Mas lá estavam os "superiores" que tantos admiravam. Quão inferior os superiores permitiram que a nobre biblioteca ficasse... Tratava-se de uma história cronologicamente decadente: um dia, ela fora a diretora daquela biblioteca e, apesar de manter tudo em ordem, foi substituída por um diretor "com ensino superior completo". Logo como simples bibliotecária também foi demitida do cargo, por muitos outros com "ensino superior". O último dos cargos, a de faxineira, ainda permitia a ela a chance de organizar e tornar atraente aquele lugar... Até que foi posta para fora de lá, pois uma mulher com "ensino superior incompleto" estava ali para limpar e espanar.  Saindo de lá, a pobre trabalhadora sem ensino superior algum viu o desinteresse se instalar na biblioteca. Lá, não a deixavam entrar. Nem ao menos muitas pessoas queriam entrar. Os superiores administravam um vazio agora. Os inferiores ficavam de fora, esperando uma chance de serem vistos com mais dignidade e capacidade.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.