Archive for dezembro 2011

Última tragada de ilusão



Fabian Perez

Com o cigarro queimando entre seus lábios, lembrou o fascínio que era fumar a algumas décadas atrás. Ouvira um dia desses algum jovem metido a intelectual afirmar que o mundo está se encaminhando para a decadência... Com isso, ele tinha que concordar, afinal de contas por que toda essa preocupação com os vícios das pessoas? Deixava o cigarro e a moral dele em paz e fossem procurar imoralidades nas próprias vidas, mas dizer que fumar era ruim? Feio? Ah, tantas mulheres caíram nos braços dele por conta de uma tragada profunda... É, o passado sempre soava mais brilhante. O futuro estava cada vez mais banal.
Agora fumava o último cigarro da última carteira, pois se entregara aos tratamentos contra um câncer no pulmão, que diziam ser causado pelo fumo. Mentira, pensava ele. Aquele câncer é coisa de fim da vida, natural a qualquer ser humano vivo. Apenas chegava o seu fim e a opção do seu corpo fora por um câncer... Poderia ser outra doença, ora.
Porém, o último cigarro cessou. A nicotina foi passando; o seu efeito e as ilusões, também. A realidade não era mentira, a doença e sua causa, também não.

Terror psicológico


The death of Chatterton - Henry Walls


De Agatha Christie a Conan Doyle, percorreu alguns contos de Allan Poe e descobriu-se assassina de tudo. Sonhos, vontades, homens que a ignorava, qualquer poeira varrida pelo vento... Era tudo motivo de suspeitas. Crimes que sua mente arquitetava. Tornando-se louca, imaginou ao redor uma gama de malucos. Familiares conspiradores, amigos falsos e animais demoníacos. Para não correr chances de ser a presa e também para não se tornar a predadora, desapareceu do seu próprio caminho, entregando-se ao último suspiro dos suicidas. Morreu, assassinada pelo seu terror.

O ocaso da solidão



Reflections in the sun - Fabian Perez

Tinha se acostumado com a sua solidão. Até que sorrateiramente sentiu-se acompanhada. Dia após dia, percebeu que caminhava junto de si um ser que nunca havia percebido antes. Um ser que, por mais leve e pouco notável que fosse, a complementava de forma brilhante. Pois o dia, na sua presença, parecia mais claro, mais limpo. Pois o ar era respirado com maior firmeza, maior satisfação. Aos poucos, procurou pela solidão e já não a encontrava. Passou a viver acompanhada e feliz consigo mesma, pois aquele ser que fora se descobrindo era a sua própria independência. Independente, acabou com a solidão e foi ser feliz.

Imbatíveis problemáticos


White and red - Fabian Perez

Ali brindavam os sobreviventes. A crise viera para desempregar muitos e deixar assalariados somente alguns. Os poucos, numa simples festa de fim de ano, ali estavam. Cada sorriso estampado na cara era apenas uma farsa impensada. Realmente, sem pensar nos problemas que todos tinham – nas dívidas, nas papeladas da firma, nas dúvidas afetivas, nos descasos familiares – aqueles funcionários brindavam e sorriam para demonstrar a aparência dos “vencedores”, “melhores” e “imbatíveis”. Sim, porque até mesmo cheios de crises pessoais, aquelas pessoas tinham que oferecer aqueles sorrisos. O que aquele mundo perverso exigia não era a felicidade real, mas a forjada. Pois os forjados eram os sobreviventes.

Dona de casa


The color of daylight - Jeffrey T. Larson

Depois de observar as sujeiras do cotidiano da família escorrerem pelo cano da pia, ela estendia as roupas no varal, sentindo o aroma floral do produto de limpeza no ar e o calor do sol na pele. Com as mãos úmidas e os olhos também, lamentava sua solidão quase serviçal. Ninguém ousava aparecer por perto com receio de serem convocados a ajudá-la naquela tarefa. Porém, aquele foi o melhor momento do dia para perceber uma verdade: assim como o vento, que varre o campo, imagina ser dono das verdes gramas e, no entanto, se engana – ela agora bem percebia que, apesar de varrer, lavar e limpar aquela casa, não passava de uma simples dona de casa, sujeita às sujeiras dos donos da casa.

Simples viver



Castilla I - Miguel Marazuela

O casebre era vestido de uma fantasia imutável. Quem por ali passasse, lamentaria a pobreza do mundo. Lamentações inúteis. Os donos da casinha apenas esqueceram-se do mundo e da mania de riqueza das pessoas. Sem fantasias, apenas eram tão felizes na simplicidade daquele lar, que a feia aparência servia para afastar intrusos que, por ventura, sempre ousavam em perturbar os seres felizes. Ali dentro do casebre viviam um homem idoso, sua senhora esposa cega e seus três comportados cachorros. O homem não havia mais o que apreciar do que a beleza do amor da sua esposa; a senhora, cega, não enxergava a feiura da casa, somente sentia-se amada; os cachorros, completudes daquela fidelidade, não eram humanos para se importar com padrões de beleza. Simplesmente viviam naquela imensa e feliz simplicidade.

Platônico


Patience is a virtue? - Karen Cooper

Quando a dor de cabeça insistia em lutar contra ela, o seu amor platônico era o sussurro simples que a curava. Quando o cansaço de um dia desgastante surgia, ela relembrava a face nobre do seu amor platônico e logo se sentia fortalecida. Quando o calor da cidade a trazia problemas no dia-a-dia, ela recorria à frieza do seu amor platônico para se sentir melhor. Quando suas dificuldades pareciam insuperáveis, ela pensava que nada era mais platônico e impossível do que aquele imenso amor. De fato, aquele homem a quem ela tanto desejava nunca saberia o quão importante ele era na vida daquela mulher. Ser platônico, na verdade, tornava esse amor singularmente essencial para ela, como um remédio para todos os males, como um colo de um guerreiro que tudo combatia para protegê-la.
Ela simplesmente amava-o ainda mais, por platônico ele ser.

Música assassina


Andrew Atroshenko


Na manchete do jornal mais importante do país, em letras graúdas, a notícia trágica da destruição por incêndio do teatro nacional, numa noite de espetáculo musical. Apenas uma morte foi registrada – de uma moça que compunha a orquestra que tocava no instante do acidente. Por trás das páginas cinzas do noticiário, havia a estória de amor daquela moça pelo seu instrumento musical. O violino era como a extensão do seu corpo que tocava notas agudas de felicidade. Sempre que ela se apresentava – houvesse ou não público para assisti-la – ela se esquecia do universo ao seu redor e só voltava a si quando terminava sua apresentação. Essa foi a sua causa mortis naquela noite: tocando seu violino, morreu na fogueira da sua própria ilusão, sem sentir dor, apenas o calor da felicidade das notas musicais.

Criança em fagulhas



Young black child - Maria Saldarriaga

Fogos explodindo acima da sua cabeça. Gritos que não diziam palavras, apenas gritavam. Ouvidos congestionados. Visão embaçada pelas lágrimas. Profundo desamparo, não sabia para onde correr, nem quem seguir. Não sentia mais as mãos dos seus pais lhe protegendo. Uma noite tremendamente escura que não parecia nunca acabar...
A criança afegã acordou assustada do pesadelo. O quarto do orfanato estava sendo iluminado por fogos de artifício que explodiam no céu lá fora. Não tinha seus pais ao seu lado, apenas algumas cobertas. O pesadelo que acabara de ter nada mais era do que as lembranças de um ano de guerra constante no seu país. Agora, a criança assistia à turbulência de um país diferente comemorando a chegada de um novo ano. Comemoração que trazia tanto as lembranças terríveis como a esperança – esta última coisa ainda tão pouco compreendida.

Carta de divórcio



The dream - Pablo Picasso

Eu quero a ilusão calma de uma manhã sem ti. Eu quero o alívio de acordar do pesadelo de tê-lo por perto quando em vez. Eu quero o vazio da sala, quando bates a porta e sais gritando ao vento o quanto sou ingrata. Ingrata? Claro, não agradeço mesmo teus alardes, teus insultos de homem machista sem freio e tua burrice de homem que pensa que manda em casa. Eu continuo, em cada anoitecer, a desejar a infinitude das tuas noitadas, embriagadas e traíras, só para não ter que olhar na tua cara. Prefiro a cama só minha, pois ela é mais calorosa sem teus nojentos roncos.  Mas, acima de todos esses quereres, eu apenas quero que me compreendas, que me realizes e vai, de uma vez só, embora. Pois “a boa hora” da partida já passou há muito tempo. Vai! Em péssima hora, mas apenas vai! E gaste todos os teus escrúpulos com outra mulher, pois essa mulher, que te escreve essa carta, se apaixonou por outra pessoa: ela mesma! Completamente apaixonada por mim, te mando para bem longe – seu ingrato!

Missão espiritual


Lucy and Camila - Fabian Perez


O esposo de Maria tinha apenas poucos meses de vida. Era difícil encarar que em tão pouco tempo Maria iria perder o amor da sua vida. Sentindo um forte anseio por ter um filho do homem que partiria em breve, ela engravidou. Nove meses foram o tempo que restou de vida do homem e o tempo que daria ao mundo um menino. Um dia antes de a criança nascer, o pai morreu. E no dia em que a criança nasceu, Maria também morreu.
Falecida no parto, Maria recuperou sua consciência no paraíso. Passou a procurar pelo seu marido falecido, uma vez que tinha em mente que iriam se encontrar no céu. Porém, um anjo surgiu para Maria e explicou-lhe: “Você morreu, Maria, porque cumpristes tua missão. Dera continuidade à vida daquele homem com quem se casou, pois, mesmo ele morrendo, foi ressuscitado no corpo do filho que acabara de dar luz. O mundo precisa daquele homem e agora você merece o paraíso”. Maria desfrutou pouco do paraíso, por estar sempre com saudades do seu amor. Compreendeu que missão cumprida nem sempre traz a felicidade.

Aposta



Paul Cezánne

- E ela veio toda prosa pedir para eu parar com meus vícios, para eu saber gastar meu dinheiro com a família...
- Meu amigo, família ingrata essa a sua que só pensa no seu dinheiro. O que? Eles não querem que você seja feliz jogando um baralhozinho?
- Pois é, são uns ingratos mesmo... Penso que não querem minha felicidade. Não percebem o quanto sou feliz jogando baralho com você, meu amig...
- GANHEI! Mas uma vez, ganhei! Passe os duzentos cruzeiros para mim! Não se demore, vá!
Entristecido, o perdedor entregou o dinheiro da aposta. Amigos, amigos; apostas à parte.  E as famílias dos apostadores? Mais à parte ainda!

Proteção divina



Muro de um castelo

Sua casa de esquina era alvo de assaltos constantes. Para se proteger, contratou vigilância, cachorros ferozes, instalou sensor de movimento, cerca elétrica, câmeras, alarmes barulhentos, holofotes, fortes cadeados e trancas para portas e janelas... Mas mesmo diante de tanta tecnologia e segurança, os assaltos persistiam e saiam vitoriosos. Cansado dessa situação, recorreu à proteção divina: mandou pintar nos muros da esquina uma frase supostamente bíblica, com letras bem graúdas – “Quem rouba, Deus não perdoa. O inferno só é cheio de ladrões”. Completou a pintura colocando um capítulo e versículo qualquer. Desde esse dia, nunca mais teve sua casa assaltada. Percebeu que, talvez, ladrão só tenha medo de perder o paraíso, porque no inferno, todos eles já viviam.

Herdeiros



The family - Gustav Klimt

Ela era tão feliz: possuía o homem da sua vida e acabara de dar vida a uma criança linda. O homem era tão feliz: acabara de possuir um filho, herdeiro e criatura a quem ele passaria todos os seus conhecimentos. A criança recém-nascida seria infeliz: acabaria entendendo que sua mãe só o colocou no mundo para segurar o marido, e teria que viver debaixo das garras de um pai rígido e inflexível, para quem tudo o que sabia era o correto, nada mais. Seriam esses três mais uma família que pensa ser feliz, carregada de heranças infelizes.

Ladrão de terços



Praying hands

Tinha um estigma mental. Adorava orar sentindo entre os dedos as contas de terços. Começou uma busca implacável pelo maior número de terços diferentes rezados. Comprar já não bastava; passou a roubar terços. Sorrateiro, como quem pedia perdão aos céus, furtava o terço e, em seus momentos de reclusão, entoava as orações sentindo as contas pequenas e grandes entre suas digitais. Porém, um dia, sem terços, foi parar na prisão, rezando e fazendo súplicas ao seu Deus. Ele fora condenado por roubar o terço de ouro da igreja central da cidade. Na cela escura, o ladrão de terços apenas suplicava por algum novo terço para por entre as mãos e rezar.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.