Archive for setembro 2011

Construção de homens


Telephone Building Lower New York - John Marin


De longe, o garoto observava: na rua, novas construções estavam sendo feitas. Havia homens suados debaixo do sol infernal, freneticamente martelando madeiras, quebrando asfaltos, cavando o solo, enterrando canos, serrando metais... O semblante de cada um daqueles homens era de puro terror. Terror da fadiga, do trabalho incessante, do salário tão pouco. Sim, o garoto sabia que o salário deles era pouco, porque, de longe, ele também observava seu padrasto: o cara de roupa social, debaixo de um enorme guarda-sol, de óculos escuros, ventilador apontado para o rosto e berrando ordens por um megafone. Este, com todas as mordomias, era  o chefe da construção e quem mais ganhava ali.
É, seu padrasto bem dizia: “agradeça e aproveite suas boas condições para construir seu futuro bem remunerado, ou se não você vai servir para construir o futuro dos outros bem remunerados”.

Rotinas quebradas



Room in New York - Edward Hopper

Tanto tempo juntos esgotou o enlace do romance entre eles, aquele gostinho bom da surpresa ao longo do processo de conhecimento mútuo. Agora, conhecendo-se tão bem, já não havia mais nada que os excitassem como antes. Então, um filho parecia bastante conveniente para quebrar o cotidiano. E, como num passe de mágica, tiveram um filho. As experiências de pai e mãe nutriram mais os desafios de casados... Porém, o que eles não haviam pensado antes era o fato de um filho ser para sempre, não como um objeto para sair da rotina, mas como um ser que os forçaria a criar uma rotina fixa.
Com o tempo, perceberam que não nasceram para serem pais. Infelizes, a única solução foi o divórcio. Com cotidianos diferentes, deram ao mundo mais uma criança com pais separados.

As graças do povo


The arena at Arles - Vincent Van Gogh


Sua tristeza caiu nas graças do povo. Percorria as ruas, tentando ser a mais transparente das pessoas, mas a cada esquina havia alguém apontando em sua direção e deixando alguma risada escapar. Sua vida social fora abatida como um palhaço de circo sendo vaiado e enterrado debaixo de tomates lançados pela plateia. Um dia, porém, resolveu mudar sua situação. A graça do povo caiu nas suas próprias risadas. Em praça pública, encarou cada rosto que a encarava. Riu de cada riso mal estampado. Permaneceu de nariz empinado, pronta para rir de quem tentasse a rebaixar. E percebeu que, sem entender o porquê de ser agora motivo das graças particulares dela, o povo parou de encará-la; o povo passou a se sentir ridículo por ser a razão de piada alheia. O riso dela deu a volta por cima. Rindo, concertou sua vida.

Ansioso violeiro


Dream in a dream - Fabian Perez


Dedilhando as cordas do violão velho, ficou esperando o mês de setembro acabar. Ficou aflito pelo começo de outubro. Ansioso pelo final do ano. E tinha todos os motivos para aquela sua derradeira espera. Já não possuía nada: perdera a família, os amores passaram, as dívidas cessaram. Desistira dos negócios; entregou-se a vida solitária. E, como um xeque mate, descobrira que sua vida minguava pouco a pouco devido a uma doença irreversível.
Aquela última descoberta servira como uma ótima ‘carapuça’. Já não tinha forças – nem vontade – de recuperar o tempo perdido, voltar à vida social, tentar um recomeço. Descobrir que o seu tempo estava acabando era reconfortante, pois já não ansiava por mais nada. Ou melhor, ansiava sim: pelo final dos seus dias. E, ansioso, continuou a dedilhar o violão.

Inférteis


In daddy's hands - Mats Eriksson


Casados a mais de vinte anos, nunca tiveram filhos. A princípio, porque queriam curtir o tempo, infinitamente devotados um ao outro. Logo após, porque não se julgavam preparados para educar uma criança. E agora, porque não conseguiam conceber a vida. Passaram a viver uma longa saga pela busca da gravidez. Foram envelhecendo ainda novos. Quem os visse saindo das clínicas de fertilização, perceberia um casal de jovens caducos.
Depois de anos tentando, nasceu uma bela criança. Mas a vitória não fora suficiente para apagar a caduquice que tomou conta do casal. A criança – que não queria nascer – ganhara como pais um casal de velhos desgastados. Um casal infertilizado.

Luz



Rosa - desconhecido

Sozinha em casa, ela começou a sentir as dores. O peito arqueou num acesso de falta de ar. Os olhos lacrimejaram e não mais queriam piscar. Pediu aos santos que a mantivessem viva até, pelo menos, por no mundo aquele ser. E foi somente depois de quase uma hora de ávido esforço, que sentenciou com um grito o nascimento de sua criança.
Nesse instante, seu marido subia as escadas da casa e adentrava no quarto, quando viu uma forte luz sair do ventre da sua esposa. Luz que durou poucos segundos, mas que deu a ele a certeza de que era um anjo que nascia. Sua esposa acabava de dar a luz.

Finita


Shadow - Mary Jane Ansell


Reconheceu sua própria vida. Agora tinha a nítida noção de que ela era única, que teria que fazer escolhas, construir os próximos anos. Entendeu a existência da morte. Passou noites em claro após perceber que sua vida era finita. Sofreu de início, demorava a pegar no sono. Mas o dia vinha e ela percebeu que já era hora de encarar aqueles novos dias como únicos e intransferíveis. Então, certo momento, nasceu dentro dela uma pessoa determinada a encontrar responsabilidades sérias com as quais se preocupar. E foi por isso que ela largou os brinquedos, as bonecas, os tempos de jogos com os colegas da rua. A menininha de quase dez anos passou a almejar ser adulta. Seu espírito infantil foi impregnado pelo medo da finitude da vida e, assim, entregou-se a seriedade da vida adulta.

Anulados



Jack Vettriano

Tudo aquilo em que ele acreditava que conseguiria, ele alcançava. Todas as suas conquistas eram frutos de pensamentos positivos. Sem esforços, sem lutas, nem suor – apenas pensamentos positivos. Eis, porém, que encontrou nela a única coisa não conquistada. Apesar de todo seu esforço em acordar todos os dias pensando que um dia a teria nos seus braços, ela permanecia distante, pouco disposta a encará-lo e, por vezes, levá-lo a sério.
O que ele não sabia era que ela também o queria. No entanto, eram os pensamentos negativos dela que formavam a barreira entre ambos. Tudo aquilo em que ela acreditava que não conseguiria, ela realmente não alcançava. E tudo o que conquistava era fruto de esforço, luta e suor. O pessimismo dela anulava o otimismo do homem que ela tanto sonhava estar nos braços, mas que ela tão pouco acreditava ter um dia.

Jornalista



 Evasão - Abderrahmane Chaouane

Escrevia muito bem. Fez-se notar nos meios profissionais. Como resultado, foi contratada a cargo de jornalista, com coluna diária e tudo mais. Entregou-se ao bel-prazer de escrever assalariada... Até alguns meses. O trabalho, os horários determinados, a quantidade de palavras, linhas... Pensou que iria morrer de insuficiência criativa e falta de espaço para respirar. O estresse a avisou um dia: “cuida de ti, ou te mato”. Bem enfático. Sucinto.
E foi sucintamente que pediu demissão. Descansou alguns meses e redescobriu o bel-prazer de escrever livre. Sem salário.

Prazer exigido


Groupe de quatre nus - Tamara De Lempicka


Uma perna por cima da outra. A mão de uma encontrava seu seio esquerdo. Ao sentir o toque de outro na sua anca, fazia uma cara de prazer. A boca tinha que estar constantemente entreaberta, ou variar com uma mordida no lábio inferior. Suas mãos também não podiam ficar paradas - apalpar o máximo de pele e músculos alheios era suas funções. E lambidas, e abraços, e suspiros, e gritinhos... Tudo era mosaicamente planejado para o melhor enquadramento fotográfico.
Sim, a profissão exigia muito de todos. E todos só se exigiam a tanto por conta do bom salário. Prazer mesmo só sentia quem comprasse aquelas revistas com aquelas fotos pornográficas estampadas. Ser artificial e profissional não rendia nenhum prazer.

Pobre palavra



Amish Letter Writer - Horace Pippin


Faltava um verso para o soneto. Sentia na pele a ânsia de ver pronta a obra de arte. Cada sílaba fora bem pensada. Cada suspiro, que o leitor haverá de dar, também fora planejado. Milimetricamente suas palavras estavam nuas naquela folha, prontas para serem revestidas.
Mas faltava um verso. E sua mente parou. O leitor alvo sumiu dos seus planos. Nenhuma palavra parecia milimétrica para aquela posição do texto. Sentiu uma desolação tamanha. Inutilidade. Então, uma palavra reinou naquela sua falta de criatividade... Apenas uma poderosa palavra veio empobrecer seus versos ricos. Sim, só poderia ser aquela palavra para sobreviver na escassez de vida, pois só ela era pobre e capaz de viver solitária. E, contra sua vontade, a mão perdeu a meticulosidade de escrever bonito e fez um garrancho impreciso para acabar com sua arte: ‘fim’.

Águas divididas



sem título - Edouard Manet

Ser empregado tinha suas particularidades. Uma delas parecia gritante frente às outras: a separação das águas entre os donos ricos da casa e os empregados pobres. Havia uma garrafa na geladeira com água mineral para os primeiros, enquanto para os últimos, uma garrafa com água direto da torneira. O trabalho duro de limpeza era todo refrescado nos goles da água da torneira, enquanto o rico ócio era compensado com goles de água comprada, industrializada.
Um dia, porém, um empregado quebrou as regras e bebeu a água mineral. Amanheceu no outro dia gravemente doente. O diagnóstico do médico – que a dona da casa teve a piedade de pagar – apontava ser uma infecção por bactéria transmitida por meio da água. Pelo visto o organismo do empregado não era forte ou acostumado com o outro tipo do líquido.
Muito doente e beirando a morte, a última frase que ouviu antes de falecer foi: “pobre é assim, quando tenta ser rico, se estrepa”.

Perda de tempo


Dizziness - Iman Maleki


Todas aquelas ideias pensadas e batalhadas que tinha que ler o sufocavam. Teve que encostar seus romances numa prateleira e de longe observava a poeira assentar por lá, enquanto por ali tinha as teorias obrigatórias. Lia dois ou três parágrafos e levantava da cadeira para passar os dedos pelos livros encostados. Sonhava com o tempo em que teria tempo para lê-los. Sentia o peito amargurado pelas obrigações. Então, voltava para todas aquelas leituras enfadadas.
Até que chegou um dia que, triste e desesperado, sequestrou os livros da prateleira e foi perder seu tempo nas entrelinhas ficcionais. Sorrisos, afagos, memórias, lágrimas, suspiros, tremores... Perdeu seu tempo com todos os sentimentos vívidos que aquelas prazerosas páginas traziam. Esqueceu-se dos parágrafos teóricos e forçados. Perdeu todo o seu tempo, feliz.

Bailarina espelhada



Waiting - Edgar Degas

Procuravam moças que amassem o Balé, que quisessem viver por essa arte. A moça ganharia uma bolsa para estudar na melhor escola de dança do país. Aquele era o sonho da senhora de preto; sempre quis ser bailarina, brilhar debaixo de holofotes, rodopiando com passos precisos, leves e clássicos. Ah, mas o tempo corroeu seus dias e seus pais corroeram as oportunidades que o tempo dava a ela, por isso não podia competir por aquela bolsa. Mas... Sua filha podia! E se espelhou na moça para concorrer àquela oportunidade...
Sua filha saiu da sala de testes, sentou ao seu lado e falou: “Não fui aprovada; os júris disseram que eu não tenho o espírito da dança e que pareço fazer os movimentos forçada...”. Desamarrando a sapatilha de ponta, a filha completou: “Incrível como os júris são adivinhões, né mãe? Agora que já tentei o seu sonho, posso tentar os meus?”.

Insatisfeita solidão


Melancolia - Edvard Munch


Era um escândalo aquela solidão sua. Tentava não torna-la tão explícita, mas, como se tivesse vontade própria, a solidão saltava do seu corpo e ameaçava as pessoas que por perto dele passavam. Talvez por isso essas pessoas não se aproximavam. Era como uma aura negra circundando todo o seu ser. Desde pequeno era o isolado; quando jovem, ele era o esquisito; agora o denominavam depressivo. Mas a maior lástima daquele homem não era o que os outros viam nele, mas como ele mesmo se sentia. Achava a solidão péssima, pois aquele sentimento o fazia se sentir acompanhado. Desde muito cedo sempre quis ficar completamente sozinho, no entanto, a maldita solidão insistia em circundá-lo. Apesar de tudo, ele tinha fé que um dia conseguiria se livrar daquela aura negra e deliciar-se com seus anseios solitários.

Choro


Amor e dor - Edvard Munch

O choro era baixo, mas ainda assim soava como ventania cortante no seu espírito. A resistência de seu egoísmo era flácida diante dele. Poderia ter todos os defeitos, mas lá se punha ela a aquecer o corpo arrependido dele. Entregava-se ao prazer de vê-lo completamente entregue. Naqueles momentos, era ele quem sofria. Bem sabia desse sofrimento, porém, ela não tinha certeza de por qual motivo exato ele sofria: se por correr o risco de perdê-la ou se por ter que voltar atrás à sua rigidez masculina e pôr-se a chorar. Eram assim os pensamentos dela, enquanto abraçada com ele...
E eram assim os pensamentos dele, enquanto abraçado com ela: chorar, sim! Ele sabia que só suas lágrimas seriam capazes de exprimir tamanho sofrer. O arrepender-se pedia um esforço claro para ser justificado. Tinha que se esforçar para deixar as lágrimas despencarem e só assim ver ela se derreter diante de seus defeitos injustificados. O choro ocorria, pois ele tinha a certeza de que ela voltaria atrás e o acolheria de novo. E ele seria capaz de chorar quantas vezes fossem necessárias.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.