Lara, Aldo e o mundo


Gaston La Touché

Lara era tão frágil. Cheia de incertezas, indecisões. O mundo ainda era um grande enigma para seus parcos anos de vida. Era jovem e assumia que não sabia de quase nada. Por isso a timidez diante do mundo. Mas uma coisa sempre teve dentro de si: muita curiosidade.
Tal retrato psicológico de Lara logo encantou bastante Aldo, um homem já tão vivido. Ele se apaixonou pelas fraquezas dela. Sentiu ânsia de a proteger do mundo pelo resto da vida. Logo, empreendeu no desafio de a conquistar para si. E ela se deixou conquistar, mesmo com receio, mas motivada por pura curiosidade. Então, conquistada, passou a ser mulher superprotegida pelo homem. Aldo, antes cheio de boas intenções, passou a nutrir um grave sentimento possessivo. Queria limitar toda e qualquer forma de Lara se fortalecer, se descobrir. Queria substituir a noção de mundo na cabeça dela pela noção de viver completamente voltada para ele. Queria ser o único e exclusivo universo daquela mulher. Mas mal sabia ele que não se apaga o mundo diante dos olhos dos curiosos. E que curiosidade é o primeiro ingrediente para a porção de fortalecimento que toda pessoa precisa para superar seus próprios receios. E esse ingrediente, Lara tinha em boas doses. Logo, tudo era apenas uma questão de tempo. Mais dias, menos dias... Ela iria descobrir o mundo. Iria se descobrir.

O paciente


Hartley - Alice Neel


"Minha vida está uma merda. Sei que tudo é uma tempestade feita em copo d'água. Isso só piora ainda mais o sentimento que guardo sobre mim. Odeio minha fraqueza. Não tenho forças para procurar fazer aquilo que realmente gosto. E naquilo que faço, coloco pouco esforço. Das coisas boas que tenho, sou muito desmerecedor. Nada consegui por trabalho próprio. Em nada vejo meus esmeros. Sinto-me um completo nada. Algo que vive uma vida medíocre e espera o dia do fim".
Depois desse desabafo, o psicanalista olhou profundamente no rosto transtornado daquele homem. Viu nele mais um paciente. Paciente da vida, não só paciente de consulta médica. Paciente não de paciência, mas de estar passivo. Era mais uma pessoa inteiramente passiva diante da vida. E que não acredita no potencial ativo que tem. Mais um paciente do tempo. Das circunstâncias em que acabou se inserindo. Mais um no universo de pessoas pacientes. Que não mudavam o que era. Que viviam aquilo que não queriam. O seu trabalho era tentar motivar essas pessoas a deixarem de ser pacientes. E eis um longo trabalho, por isso deixou seus devaneios de lado. Pôs-se a trabalhar.


Reflexões (i)lógicas


Mary Jane Ansell

Não podia dizer que era uma pessoa sozinha. Tinha muitos amigos. Vivia dias movimentados. Sua cabeça estava quase sempre a mil por hora. Seus dedos, sempre teclando para a conectar ao mundo. E, de vez em quando, dormia acompanhada para satisfazer seus apetites. Mas, apesar disso tudo, não conseguia fugir daqueles momentos. Quando as notificações do celular silenciam. Quando a mente reduz a velocidade. Quando ninguém aquece sua cama. Quando nenhum amigo a recorda. E, assim, sozinha, no final de um longo dia, apenas o som do nada a rodeia. E um sentimento de grande vazio preenche seu peito. Por alguns instantes, desacelera e para de correr atrás do mundo. Nota o ser que há ali dentro de si. E sente aquela estranha sensação de que algo está errado na forma como todos estão vivendo. Pensa no porquê de todos estarmos correndo de nós mesmos. Tentando nos manter conectados a todos e ao mesmo tempo a ninguém. Fugindo para aquele fim de estarmos juntos, mas no fundo isolados. Porém, logo ela fecha os olhos. Adormece. E amanhece de novo. Para um mundo em que a solidão não tem lógica.

Sintonia surreal


Lovers holding hands on beach - Helga McLeod

Ele tocou na mão dela. Envolveu os dedos ao redor dos dedos magros. Deslizou o polegar na palma da mão. Aquilo fez ela sentir uma corrente elétrica incomum percorrer seu corpo. Já ele, se arrepiou. Sem falar sequer uma palavra, apenas envolvidos no silêncio daquele instante de reencontro, se questionaram se realmente não existia alguma ligação de outras vidas. Ou uma relação de outros mundos. Ou de passados mal resolvidos. Será se existia? Não sabiam. Apenas sentiam existir aquela tamanha sintonia. Tamanho desejo. Algo que, não importava o tempo que passasse, ao se reencontrarem, sentiam do mesmo jeito. Na mesma intensidade. Não importava com quantos outros relacionamentos se envolvessem, bastava um aperto de mãos, naqueles encontros casuais, e eles já se envolviam de novo. Um no outro. Ali calados, a sentir apenas o tocar das mãos. Até essas mãos se distanciarem e cada um fingir seguir em frente sem o outro. Porque, por mais espiritual, telepática ou de outro mundo que fosse aquela sintonia, eles não estavam mais juntos. E seus caminhos estavam traçados em sentidos distintos. Porém, caminhos que guardavam diversos reencontros, só para lembrá-los que existia no mundo alguém com quem partilhavam aquela surreal sintonia.

Enlaçados


The crack up - Charles Blackman

Alguns laços nunca desatam. Ela compreendeu isso depois de deixar o filho na porta da casa do pai. O homem olhou-a nos olhos e demorou-se. Ela também demorou ali naquele olhar. E naquela fração de segundos, toda a história deles passou como um clarão de um raio na memória. Mas depois da luz, veio o estrondo forte do término. Das brigas, desentendimentos, descompassos. Não conseguiram mais seguir seus planos juntos. Divorciaram-se. Porém alguns laços nunca desatam. E o filho era aquele nó. Não adiantava ela ou ele tentar puxar o filho só para si. O nó apertaria mais e nó apertado dói. Cada um deles teria que viver com o outro, mesmo separados, mas mantendo aquele laço firme, sem deixar desatar, tampouco arrebentar. Somente com o passar dos anos, depois que mãe e pai fizessem cada um seu papel, é que esse nó aos poucos irá afrouxar. Não se partir por completo, apenas desapertar. E, assim, deixar cada um seguir - enlaçados, porém livres.

Solidão acompanhada


Supper Time - Horace Pippin

- Como foi seu dia, filha? - Foi bom. Normal. E o seu, pai? - Trabalhando muito. Ambos olharam para a mãe, dona de casa. Não perguntaram a ela como foi seu dia, pois já sabiam que nada demais teria ocorrido por ali, já que nada demais ocorria na vida deles - que saíam de casa, entravam em contato com todo tipo de gente e situações diversas - como que seria diferente ali dentro daquela casa? E não era diferente, de fato. Ao final do jantar - que era uma repetição do almoço - pai e filha se dirigiam aos seus quartos. Davam boa noite. Fingiam educação. Fingiam se importar com que a noite do outro fosse boa. E a mãe - que ficava para trás, para limpar a sujeira e organizar a bagunça - observava todo aquele fingimento automático da rotina. Observava que, ao fecharem suas portas, eles mergulhavam nas suas solidões. E seguiam assim: sozinhos, porém acompanhados. Em quartos vizinhos. Em uma vida compartilhada. Que quase sempre não levava a nada.

Distante liberdade


TM2 - Lou Ros

Mais um dia riscado no calendário. Agora faltavam quarenta dias para ele sair daquela solitária. Estava preso, sem ter cometido nenhum crime. A pena que pagava era por amor. A prisão em que se encontrava era sentimento que vivia por estar longe dela. A distância, para ele, causava tal sentimento de prisioneiro, pois ela era sua liberdade. Não importa quantas pessoas estivessem ao seu redor ou o quão livre no mundo ele estivesse. Sem ela, se sentia sozinho demais para viver. Incompleto demais para seguir em frente. Por isso, preso dentro de si. Era uma solitária em forma de homem. Então, contava os dias para ela voltar. Em quarenta dias, voltariam seus abraços, beijos e corpo. Sua liberdade em forma de mulher. A sua redenção.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.