Archive for fevereiro 2012

Carta amiga



Beautiful with Withe Neck - Marc Chagall

Veja só, meu amigo, onde paramos. Sua loucura por mim me deixou sem princípios. Éramos eu e você na calçada da escola, até alguns anos atrás, pensando nas peripécias e brincadeiras da nossa pequena vida. O infortúnio se instalou quando você reconheceu em mim uma mulher e eu, em você, um homem. Os opostos se atraem e se destroem. Nada de amigos, não é? Acabamos com a lealdade de outrora e hoje somos mal vistos. Corroemos nossas dúvidas sacanas num voluptuoso fim de nós mesmos. Agora que sabes como funciona uma mulher e eu sei como funciona um homem, desaparece da minha vida e diz que não somos mais amigos deveras... Escrevo essa carta, querido, para lhe alertar que sinto falta das brincadeiras inocentes do nosso passado. Apenas quero que não deixe o nosso futuro adulto empobrecer sem a amizade leal que tivemos, tudo por conta de uns desejos de jovens insanos. O fato é que, atualmente, não se consegue amigos como antes, e devido a isso, mande notícias. Tua amiga, unicamente amiga, te espera.

Hino de um quase cientista



The cage - Berthe Morisot

Sonhou um dia ser cientista. Como sonhador, realizou a sua primeira experiência ainda pequenino: aprisionou um passarinho numa gaiola por meses a fio. Observou e anotou todas as reações do animal. Percebeu que o cantar foi ficando menos melódico. Mais improvisado. Quase gritado. Decorrido o tempo certo, soltou o passarinho. Um cantar ininterrupto soou no ar e, mesmo não tendo o animal à vista, notou que ele estava pelas redondezas, pois nunca tão alto ouviu aquela cantoria. A primeira conclusão científica da sua vida foi intitulada de ‘liberdade’: uma cantiga alta, que soa como um hino à vida, quando se livra das grades impostas pelo mundo. Daquele momento em diante, mesmo não se tornando um cientista de fato, regeu todas as experiências de sua vida com base naquele conceito. Qualquer problema já tinha sua hipótese implícita: “se livre fosse, não existia esse problema”. 
Como passarinhos, deixava os problemas voarem. Livres.

Súplicas em vão


Rosa artificial - Alejandro Boim

Canta baixinho, mãe, aqui perto de mim. Canta aquela canção de ninar, eu queria tanto dormir... Queria desligar os pensamentos por um momento. Oh mãe, eu sei, não fiz todas as minhas tarefas de casa, meus deveres, minhas responsabilidades, minhas dívidas. Está bem, mãe, não sou mais uma criança, mas me perdoa, eu só queria um instante feliz nos seus braços... Mãe? Não some, mãe! Fica comigo... Ou me leva com você. Só com você.
O lamento se ouvia de longe. A moça não aceitava a morte da mãe. Comentavam que ela não gostava da mãe enquanto viva; que tampouco se despediu dela. Arrependida, definhava em cima do túmulo, em posição fetal, conversando as conversas que nunca teve com sua mãe.

Elo harmônico



Piano keys - Todd Horne

Depois que ele morreu, ela encontrou nas notas do piano o refúgio para onde correr e se sentir protegida das saudades que ele deixou. Ele não era músico, nem tampouco a incentivava a ser uma, porém, de alguma forma transcendental, o vibrar das cordas do piano que ele havia deixado como enfeite da sala de estar a fazia voar sobre a vida e ir buscar na morte a presença dele, do abraço dele, da proteção dele. Era um melódico encontrar. Era um harmônico “boa noite, querida, te amo”. Podia ele estar ali ou não, mas aqueles dedilhares no piano levavam a viúva pianista a nunca se afastar do seu amado. Mais do que um instrumento musical, o piano era o elo entre aqueles amantes... Era uma prova de que a música não deixa apagar os grandes e bons sentimentos.

Santa mediunidade



El comienzo (autoretrato) - Ricardo Celma

Ele teve suas obras primas premiadas nos últimos grandes salões de arte contemporânea internacional. Algumas telas foram leiloadas e contribuíram na formação de uma longa fortuna para ele. Como artista, era visto como quase divino pelos traços tão criativos. Contudo, como um humilde homem que era, não podia esquecer e cometer o erro de não agradecer o dom que a ele foi concedido: era médium. Os espíritos que via desde pequeno – antes motivos de tormentos intensos – agora eram a fonte de sua criatividade. Ele pintava céus e infernos – coisas que os outros humanos não sabiam que existiam ali, em terra, ao lado de todos eles.

A escritora

Evilanne Brandão de Morais. Tecnologia do Blogger.